domingo, 24 de setembro de 2017

Audição participante

A diferença entre observar participando (ou participar observando) e entrevistar as pessoas com quem aprendemos aparece, até onde alcanço, mais nas perguntas que fazemos do que nas respostas que obtemos. Porque as respostas, as histórias e as falas das pessoas com quem nos dispomos a estudar, nossos nativos-relativos-e-interlocutores, costumam orbitar seus próprios centros: ninguém é uma enciclopédia, e as respostas, as histórias e as falas de uma pessoa parecem sempre dialogar com as respostas, as histórias e as falas dela própria, não com nossas propostas, expectativas e boas intenções. A diferença entre observar participando e entrevistar, então, está mais nas perguntas que aprendemos a fazer - ou nas observações que aprendemos a observar - do que nas respostas que conseguimos extrair, que achamos que conseguimos extrair, muitas vezes completamente desinteressantes para quem responde.

Acompanhando o povo Tuxá do norte da Bahia, indígenas que hoje se dedicam a um processo de auto-demarcação de suas terras ancestrais à margem do rio São Francisco, tenho pouco a pouco percebido isso. Não são minhas perguntas que importam tanto - na verdade, às vezes minhas perguntas são tão bobas que nem encontram espaços para serem perguntadas. O que importa, creio eu, é o entendimento dos momentos, sentidos e espaços para falar, perguntar, e às vezes - muitas vezes - calar e ouvir o que se diz.
Aprendendo a perguntar

Também pude acompanhar duas equipes de filmagem que passaram pela retomada recentemente. Cada uma com um projeto audiovisual diferente, com entradas e entendimentos diferentes sobre as realidades indígenas, mas ambas com uma semelhança que achei notável: as perguntas.

Bem intencionadas que sejam, as perguntas diretas e objetivas, conscientes e intencionais, por vezes erram o alvo, atravessam os interesses, cometem gafes e não entendem o que é respondido. Porque as respostas, as histórias e as falas das pessoas com quem nos dispomos a estudar, nossos nativos-relativos-e-interlocutores, costumam orbitar seus próprios centros. A resposta da vida é tempo, como sabemos. Como aprender que não se deve perguntar determinadas coisas, que não se deve interferir em determinados assuntos, que não se deve querer ajudar onde não se deseja ajuda? Não muito com perguntas, parece, mas com um processo lento e menos espetacular: escuta.





* [na imagem, citação em Cynthia de Cássia Santos Barra - Literaturas de autoria indígena e revitalização das línguas indígenas, capítulo do livro "Revitalização de língua indígena e educação escolar indígena inclusiva", organizado por Anari Braz Bomfim e Francisco Vanderlei Ferreira da Costa, em 2014]

sábado, 16 de setembro de 2017

Na Casa de Minha Avó

Há dois meses, cumpri a minha sina millennial e voltei para a casa da minha mãe e avó, um sítio no interior do Rio Grande do Sul. E este retorno tem instigado certas reflexões, ainda que estejamos muito longe de Na Casa de Meu Pai, livro do filósofo Kwane Anthony Appiah publicado em 1993, cujo subtítulo é a África na filosofia da cultura.

Se Appiah, nascido na Inglaterra e criado em Kumasi com seu pai, usa elementos autobiográficos para discutir as construções históricas de raça e as implicações da construção de uma identidade panafricana, aqui sinto iniciar o movimento de modo inverso. Nas manhãs, enquanto as panelas trabalham no fogão e o café esfria no fundo da caneca, revesamos os temas de conversa. Minha avó reconta suas histórias de vida, a infância na Indonésia, o período da guerra, a juventude na Holanda, a imigração para o Brasil, as amizades na São Paulo dos anos 1950-70, a chegada ao Rio Grande do Sul e as adaptações à "colônia alemã". Eu narro as minhas viagens de campo para o Amazonas, falo dos amigos que fiz, dos modos de vida em Manaus, Parintins, Tabatinga e na aldeia. Mas também conto do processo de escrita da tese, passo a passo como eu estou montando as seções dos capítulos, estruturando um argumento.

No primeiro dia em que cheguei, numa dessas conversas, em um bloquinho de anotações que minha avó usa para escrever listas de supermercado, fazer sua contabilidade ou registrar nossa pontuação nos jogos de cartas, eu desenhei uma estrela formando o diagrama dos cinco capítulos que quero escrever, e indicando como suas partes se interligam. Sobre a mesa estava um teçume feito pelos Baniwa, que eu trouxe de Manaus depois de uma das minhas viagens. Minha avó adorava acompanhar o padrão de tessitura das fibras, que em uma das extremidades era quebrado pela introdução de um novo padrão. Meu diagrama de tese era também um padrão de tessitura. E também o são os bordados de lã nos quais minha vó passa seus dias trabalhando, escolhendo para cada desenho o melhor ponto e as combinações de cores mais harmoniosas de lã. Os três trabalhos evoluem pela repetição de certos movimentos, que geram formas ampliadas de si, um jogo de escalas, repetições e variações. Ao mesmo tempo, os três trabalhos exigem cuidado com os arremates e acabamentos, e tem segredos que só são revelados no verso. Na mesa da cozinha, encontram-se três artefatos, três diferentes habilidades de feitio, três qualidades de materiais, três processos de conhecimento que, justapostos, podem ser comparados sem serem confundidos. Pela tessitura de seu bordado e de suas histórias, minha vó constrói entendimentos sobre o teçume Baniwa e sobre a minha tese de doutorado sobre universitários indígenas Sateré-Mawé.

Pela tessitura de seu bordado e de suas histórias, eu também construo entendimentos sobre a minha tese de doutorado, ao demonstrar para minha avó o que estou fazendo enquanto tamborilava o teclado do computador. Estou, desde que cheguei, trabalhando vagarosamente no capítulo 2, dedicado à antropologia urbana. Em um olhar simples, a escolha de autores é como a escolha das lãs, para tecer as figurações da minha tese. Mas é também diferente. Tenho trabalhado na comparação de diferentes enquadramentos da noção de cidade para as ciências sociais, a partir do ensaio "A Cidade" de Max Weber, tentando mostrar a conformação de modelos, de conceitos e de temas pesquisados até chegar às práticas de pesquisa de meu próprio núcleo, por um lado, e discutir a transformação dos modos pelos quais a presença indígena nas cidades foi tematizada, por outro. É um enorme balanço de autores, escolas, métodos. Parece algo já feito vezes demais, por um lado, e acima das minhas capacidades, por outro. Andei desanimada e é talvez por isso que estou escrevendo este post.

Então conto à minha avó o que esses autores queriam entender, os processos de urbanização e industrialização, e como isso afeta o modo como as pessoas entendem a si mesmas e organizam a convivência com outras pessoas, parecidas, diferentes, amigáveis, perigosas. Ao longo desses dias, falei para ela sobre Simmel e a hipertrofia da vida nervosa; sobre as reformas nas avenidas de Paris feitas pelo Barão Haussman e comentadas por Walter Benjamin; sobre Robert Park e seus colegas tentando entender os enclaves de imigrantes em Chicago; Gluckman e Mitchell pensando as migrações de africanos rurais para as cidades mineradoras da Rodésia nos anos 1940; Sérgio Buarque de Holanda comparando ladrilhadores e semeadores ibéricos; Roberto Cardoso de Oliveira e o tribalismo Terena; Ruth Cardoso e Eunice Durham pensando São Paulo e seus imigrantes; e agora Geraldo Andrello e a cosmologia Tariano sobre a cidade no Uaupés. O que é uma cidade, o que define uma cidade, o que faz uma cidade (como Michel Agier formula)? A compreensão de que não há uma resposta pronta e autoevidente para essas perguntas desperta em minha vó mais lembranças e histórias. Sobre a infância na Indonésia, a fazenda de cana, o malaio semi-esquecido, os traços remanescentes da presença portuguesa, as festas dos muçulmanos. O que é colonialismo? Sobre o pós guerra e o fluxo de categorias que aqueles saídos dos campos de concentração passaram ao serem geridos pela Cruz Vermelha e por fim "repatriados" à Holanda, apátridas, displaced persons, eurasians, indoeuropeans, holandeses no passaporte. O que é identidade? Sobre suas amizades com outros imigrantes estrangeiros em São Paulo, com quais nacionalidades ela se dava melhor, com quais nacionalidades meu avô holandês se dava melhor, as firmas estrangeiras onde trabalhou, e os estranhamentos com os modos brasileiros de fazer as coisas. O que é cultura? Sobre as mudanças em Diadema, onde eles moravam antes de vir para o sul. O que é urbanização? Sobre os dilemas da juventude da zona rural daqui ao ser escolarizada e não querer mais ficar trabalhando no campo, como seus pais, dilemas que minha avó acompanhou ao dar aulas de reforço para as crianças e conversar com seus pais, às vezes em alemão (que os riopardinhenses aprenderam em casa e minha avó na escola). O que é educação? Sobre as muitas experiências de racismo que minha avó sofreu no nosso país "miscigenado". O que é raça? As histórias de meus bisavós na Indonésia, das irmãs de minha avó, seus filhos, netos e os bisnetos bebês dos quais recebemos fotos e temos que fazer árvores familiares para acertar os nomes e ascendentes. O que é família?

Sento na cozinha da minha avó e conversamos, assim como eu me sentei tantas vezes com meus amigos Sateré-Mawé para conversarmos. A tese é também uma forma de sentar com os autores da minha bibliografia e continuar a conversa. É uma conversa mais difícil, porque eu preciso de alguma forma trazer em minhas palavras as suas, fazê-los amigos imaginários no meu pensamento, sem deixar de me surpreender com o que eles podem vir a me dizer, quando eu não estou preocupada demais em resumir seus argumentos e apresentá-los para meus leitores, também imaginários, e que nesse momento são principalmente as professoras que eu quero convidar para minha banca. Essas diferentes conversas todas tem sua densidade, baseada nos códigos em comum que eu tenho com os Sateré, construídos ao longo de nossa convivência e das histórias que partilhamos; com minha família, construídos ao longo de nossas vidas inteiras; com os autores e com a banca, construídos ao longo do meu treinamento em antropologia na USP, que eu tenho tentado explicitar na tese sem transformá-la num texto ensimesmado.

Tecer a tese é um trabalho de paciência, mas também de agonia, com o fantasma do prazo e as culpas por ter demorado a fazer certas coisas, por não ter feito outras. Os teçumes indígenas, os bordados de minha avó e as nossas histórias habitam outras temporalidades. Difícil é fazer o trânsito, não entre esses processos de conhecimentos todos, mas entre essas temporalidades e os requerimentos de cada uma. Acho que tenho a sorte de, nos diálogos tecidos com meus colegas e familiares, ter formado amizades e apoios, aqueles que na tese normalmente aparecem lá na seção de Agradecimentos, mas que são o o verso do bordado da tese, nós que firmam os pontos e permitem que o trabalho não se desmanche.