domingo, 9 de abril de 2017

Etnografia como hermenêutica instauradora

Começo a ler os textos sobre escrita etnográfica e documentos de campo imediatamente após concluir uma versão burocrática de uma carta à FUNAI. Penso, por exemplo, na reflexão de Roberto Malighetti sobre “temporalidades etnográficas”, ecoando um tanto de Johannes Fabian, e como minha escrita burocrática não refletia a verdade de meu campo vivido até agora. Lidando com exigências administrativas do órgão indigenista federal, no que diz respeito à entrada em área indígena, converso ao mesmo tempo com uma liderança tuxá pelo WhatsApp. As diversas temporalidades etnográficas não se dão apenas pela reflexão e reflexividade da escrita e da pesquisa, parece, mas inclusive pelas distintas necessidades de registros pelos quais circulamos: interpessoal, intersubjetivo, administrativo, burocrático, oficial.

 
Pensando nisso, a dicotomia estar-lá/escrever-aqui soa quase ingênua. Ou talvez não ingênua, mas certamente datada, por ter sido muito debatida em épocas anteriores à nossa atual sincronicidade comunicacional, e comunicativa, em que a abrangência e rapidez das telecomunicações parecem sobrepor mundos que até há pouco não se encontravam com tanta frequência. “Ter estado lá”, como quereria uma etnografia mais clássica, persiste ainda hoje - afinal, eu estive na aldeia Tuxá em janeiro último - mas já parece impossível dizer que “estive lá”. De certo modo, continuo estando, já que o contato dessa temporalidade etnográfica múltipla, como a experimentamos, não se desfaz de forma tão clara e distinta quanto na época das grandes viagens a locais remotos. Hoje, bem sabemos, as conexões remotas são o que compõem o campo - e, decididamente, as redes etnográficas.

Nesse sentido, há muito o que se pensar sobre as condições literárias da escrita etnográfica: “metanarração”, ou narrativa “de segunda ordem”, como Malighetti aponta, não são características auxiliares à forma da etnografia, mas sua condição. Entretanto, essa etno-grafia não está restrita apenas à grafia, à escrita em si, mas se faz presente como modo contínuo de entendimento do mundo e das relações com o Outro - nossos interlocutores sendo, claro está, as sempre diversas modulações do Outro antropológico. Vale notar, apenas para não perdermos a graça etimológica, que se falamos tanto de nossas etnografias, é porque assumimos que ao falar do Outro somos, nós mesmos, um povo circunscrito, espécie de grupo étnico antropológico: antropólogos são aqueles que fazemos etno-grafias, escritas étnicas, êmicas - mesmo que sempre em diálogo com a ética e a ética. Somos produtores de conhecimento dialógico, mas sempre etnocêntrico em alguma medida. Etnografia.

As metáforas de escrita etnográfica se prolongam: inscrever o Outro, transcrevê-lo, assumir a autoria do texto mesmo quando o processo de aprendizagem - educação, diria Ingold ou, antes dele, José Carlos de Paula Carvalho - se dá polifônica ou dialogicamente. Metáforas, aqui, não são meras analogias: não se trata de dizer “escrevemos etnografia como quem transcrevesse uma entrevista ou inscrevesse um baixo-relevo”. Metáforas são a carne da linguagem - e “a carne da linguagem” tampouco é analogia. Pela metáfora, isto é, pelo modo de conceber a relação possível, para além da linguagem mas incorporada, manifestada nela, a compreensão do Outro se mostra de algum modo possível. Eis o intersubjetivo de Fabian, e o hermenêutico em Malighetti, Ricoeur, outra vez José Carlos de Paula Carvalho e demais hermeneutas instaurativos - para mencionar, en passant, Gilbert Durand.


Quando “lemos pela etnografia”, então, seguindo a feliz expressão de Michael Fischer, somos apresentados a mundos de possibilidades. Inscritos/escritos pelos etnógrafos, é certo, mas em alguma medida informados/conformados pelas possibilidades que o etnógrafo encontrou em campo, pelas interlocuções que interlocutou. Digo “em alguma medida informados/conformados” porque, como em todas as áreas do conhecimento, o etnógrafo não está completamente livre de enviesamentos, etnocentrismos - etno-logos-centrismo, nas palavras de José Carlos de Paula Carvalho. Mas a dimensão científica da antropologia, sua intersubjetividade disciplinar e comunitária, apresenta-se justamente, queremos crer, para balizar tais etnocentrismos da escrita etnográfica, ou do próprio pensamento etnográfico. Apresentando suas interlocuções aos interlocutores, depois de escritas, e também aos colegas e interlocutores acadêmicos, a comunidade etnográfica e antropológica vai se autorregulando, possibilitando o refinamento hermenêutico que compreende o entendimento do Outro através da leitura - da escrita e da leitura dos mundos apresentados.

Fischer debate extensamente alguns desdobramentos de determinadas etnografias recentes, sobretudo no campo das ciências. De forma resumida, ele aponta a proficuidade de dialogar com outros domínios de conhecimento, compreendendo-os como também formadores do campo etnográfico - teorias ator-rede e malhas micélicas, poderíamos supor. Mas algo dito por Fischer passa como autoevidente, e gostaríamos de ressaltá-lo aqui: a ideia de que o objeto etnográfico (pensemos no objeto de pesquisa de que fala Oscar Calavia Sáez) é um objeto transicional. Fischer não parece se referir à ideia do psicanalista inglês Donald Winnicott, de objeto transicional e espaço potencial nas etapas de socialização e desenvolvimento (infantil, mas não só), e também não parece pensar objeto transicional como o faz, por exemplo, o psicanalista francês André Green, para quem o mito seria um objeto transicional coletivo. Mas Fischer cita Lacan, então julgamos apropriado desdobrar um pouco a ideia de campo etnográfico como objeto transicional.


Resumidamente, objeto transicional é uma noção winnicottiana que indica certo processo de desenvolvimento psíquico infantil e de individuação. O bebê, mônada psicologicamente indiferenciada em estágios iniciais, quando se compreende num ser compósito mãe-bebê, passa progressivamente a tomar consciência do mundo social e objetivamente externo a si. Esse processo de entendimento psíquico em que um Self se vê em conexão com um Outro, para Winnicott, é passível de acarretar traumas e disfunções violentas, se não for processado de uma maneira integradora. Daí a importância do objeto transicional: esse é aquele cobertorzinho de zebra, imundo e esfiapado, que a criança arrasta para todos os lados sem permitir que qualquer força neste mundo o leve embora. Ou lave. Essa conexão mediadora, esse objeto, funciona como uma transição psíquica saudável no processo de amadurecimento e individuação. Através dele, a compreensão de que o Outro existe e é relacionado ao Si, ao bebê - instintivamente etnocêntrico, diríamos - se torna possível. O espaço potencial que decorre do objeto transicional é o espaço das capacidades de conexão, relação e entendimento do Outro. Como nas boas etnografias, supõe-se.

Escapa-nos se Fischer pensava em Winnicott ao propor essa correlação. Imagino que não, pois nem Winnicott nem André Green aparecem em suas referências, e Lacan está em outro registro. Mas isso não invalida a reflexão: a etnografia, mais que etnocentrismo letrado, é objeto transicional coletivo, acadêmico e científico, na passagem disciplinar da antropologia - e de cada antropólogo - de um estágio monádico a um dialógico.

(Algumas) Referências

FABIAN, Johannes. 2006. A prática etnográfica como compartilhamento do
tempo e como objetivação, Mana, 12, 2. Rio de Janeiro, out. (http://ref.scielo.org/tr3n7z )

FISCHER, Michael M. J.. Etnografia renovável: seixos etnográficos e labirintos no caminho da teoria.Horiz. antropol.,  Porto Alegre,  v. 15,  n. 32, Dec.  2009 .   Availablefromhttp://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-71832009000200002&lng=en&nrm=iso

MALIGHETTI, R. Etnografia E Trabalho De Campo:
autor, autoridade e autorização de discursos. Caderno Pós Ciências Sociais - São Luís, v. 1, n. 1, jan./jul. 2004

SÁEZ; Oscar Calavia. Esse obscuro objeto da pesquisa : Um manual de método, técnicas e teses em Antropologia, ed. do autor, Sta. Catarina. 2013.

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