quinta-feira, 16 de março de 2017

Sujeito e objetos de pesquisa: sobre os limites e as trilhas

Por vezes, problemas encontrados na vida tornam-se problemas de pesquisa. Por outras, o que julgávamos pesquisa deixa de ser somente isso e passa a ser, acadêmica e pessoalmente, parte importante da vida. Meu primeiro orientador acadêmico dizia, por exemplo, que tudo tem a ver com tudo - a despeito das distinções que fazemos ao traçar projetos e argumentos. Desde então, mais de uma década após, com pesquisas variadas em áreas e temas diferentes, a ideia de que tudo tem a ver com tudo ainda me serve de condução. E, como constantemente percebo, não apenas condução pessoal mas também - e às vezes principalmente - condução acadêmica, orientação de pesquisa e pesquisas. Exatamente o contexto em que esse mantra foi falado.
    Talvez seja um truísmo dizer que o trabalho antropológico transcende, em tempo e espaço, o projeto do trabalho antropológico. Que não pesquisamos (sempre) em laboratório, sabemos; o que por vezes não assumimos, por vezes não percebemos, é que as ideias que nos acompanham em teoria, em prática, em campo e em escrita não deixam de existir em nenhum momento da vida, e ao longo dos anos elas vão constituindo a base de tudo aquilo que vivenciamos. Dentro ou fora dos estudos, portanto.
    Quando iniciei minha primeira fase “séria” de pesquisa, passei a trabalhar por alguns anos com comunidades budistas chinesas, de Taiwan, em suas missões no Ocidente. Na altura, tinha a expectativa de pesquisar certas noções profundamente budistas (a ideia do desapego no budismo Chan/Zen) em contextos de diálogo internacional, inter-hemisférico, intercultural… em suma, tinha a perspectiva de compreender como vinham (e vêm) se dando os processos de transmissão e ensinamentos budistas chineses no Ocidente contemporâneo. A princípio eu não percebia, mas com o passar do tempo foi ficando clara a natureza absolutamente tradutória e antropológica dessas dinâmicas socioculturais: era impossível compreender como o budismo chinês de hoje, com sua dimensão fortemente tradicional e oriental, se apresentava aos praticantes modernos/ocidentais caso eu não levasse em conta os múltiplos fluxos doutrinários, históricos e pragmáticos postos em jogo nesse contato religioso.

Cantos e sutras no mosteiro Foguang Shan, Kaohsiung, Taiwan
Essa pesquisa era parte de meu doutoramento em Cultura e História das Religiões, um programa interdisciplinar sediado na Universidade de Lisboa. Não tinha um caráter institucionalmente antropológico, portanto, apesar de minha formação inicial em Ciências Sociais, e tive oportunidade de dialogar muito com outras áreas de estudo, como as Letras (em que sou Mestre), Estudos da Tradução, Filosofia/Teologia (área na qual minha bolsa CAPES era concedida) e Ciências das Religiões, por exemplo. Claro que sempre tive certa inclinação antropológica, o que contribuiu bastante com o entendimento de algumas relações observadas e vividas em campo. Porque, ao mesmo tempo, sempre tive certa inclinação religiosa, e desde há muito tenho uma proximidade - doutrinária e prática - com o budismo, que só faz se fortalecer.
Atualmente doutorando em Antropologia Social, e trabalhando tanto com Etnologia Indígena quanto com certos ramos da antropologia linguística/da linguagem, me pego de volta ao começo deste texto constantemente, pensando onde tudo tem a ver com tudo e em que medida minhas pesquisas anteriores dialogam com a que realizo agora. Felizmente, muitos elementos de conexão ficam claros conforme avanço, e me tranquiliza perceber que os objetos que pesquiso são criados não apenas no diálogo etnográfico com meus interlocutores indígenas, mas também no diálogo constante que faço entre minhas diversas pesquisas.
Chegado à aldeia Tuxá de Rodelas, no sertão da Bahia e às margens do São Francisco, local em que agora pesquiso, esses diálogos são quase imediatamente acionados. Não apenas por mim, mas também pelos sujeitos com quem me deparo, conheço e converso. Pelos mesmos sujeitos a quem me apresento, demonstro meus interesses acadêmicos e de quem vêm as primeiras fronteiras que definem o campo de trabalho. Para além de dialogar, é interessante entender os diálogos, porque neles se colocam todas as trajetórias de vida e expectativas daquela comunidade ali reunida. Num encontro de vidas e vivências, desse modo, o campo etnográfico começa a tomar forma, a despeito das - ou justamente graças às - resistências e recusas.
Trabalhando com chineses na Europa ou em Taiwan, parte de minha atenção estava em compreender o que era dito/ensinado/praticado por eles e o que, por outro lado e ao mesmo tempo, era ouvido/entendido/praticado por nós, ocidentais em meditação, ocidentais recitando sutras em chinês antigo, ocidentais tonsurados e feitos monges por alguns dias. Ocidentais, desse modo, entrando numa tradição em tudo outra, mas que também se articulava para permitir tais recepções. Tradição, tradução, diria eu - com isso parafraseando a confissão de traição dos tradutólogos.

 
Armando Apako, pajé tuxá da Aldeia-Mãe, Rodelas, Bahia

No sertão baiano sou confrontado, enquanto antropólogo, pesquisador acadêmico, com certa interdição a meus interesses imediatos de estudo: o povo Tuxá que me recebe ouve atentamente o que tenho a dizer, minha intenção de trabalhar questões poéticas e rituais presentes em seu cotidiano, e depois de ouvir atentamente agradece meu interesse, mas aponta outras direções. A noção do desapego no budismo que pratico, complementando a pesquisa que pesquiso, agradece as mudanças de direção e segue por elas. Primeiro encontro etnográfico, primeiro momento de minha chegada nesta comunidade etnográfica, primeira lição: não sou eu quem me navega.
O povo Tuxá de Rodelas, aliás, antiquíssimo na região, vem sofrendo ao longo de décadas com expropriações de seus territórios tradicionais e com as impossibilidades de trabalho e vida que daí derivam. À margem do São Francisco, o tal “da integração nacional”, perderam suas ilhas ancestrais, onde plantavam, criavam e cantavam junto a seus antepassados, devido a posseiros - figuras onipresentes, infelizmente, neste país colonial - e também devido à mais recente investida monstruosa que o Estado-nação lhes concedeu: inundando sua antiga aldeia e ilhas com a barragem de Itaparica, gerando energia para um desenvolvimentismo que certamente não inclui a todos, a CHESF (Companhia Hidrelétrica do São Francisco) removeu o povo de seu solo e rio tradicionais e até hoje, três décadas depois, não cumpriu o acordado e nenhum território compensatório foi demarcado para os Tuxá. Não admira, portanto, que minha boa-intenção antropológica de estudar seu ritual, um dos elementos centrais da identidade e força comunitárias do povo, não tenha sido imediatamente bem recebido. Por que deveria, se de certo modo represento também o que os afeta e prejudica desde a invenção do Brasil?
Impossível, portanto, continuar com o objeto mais ou menos definido que tinha antes, quando entrei no doutorado e antes de entrar em campo. Mas como Deus abre janelas ao fechar uma porta, segundo o ditado, nenhuma mudança de orientação traz impactos só negativos. Às vezes, nem mesmo chega a trazer nada de negativo: a despeito da mudança aparentemente radical de caminhos, o que os Tuxá de Rodelas me oferecem quando me dizem deles, de suas necessidades, receios e cuidados, é muito mais valioso - para a pesquisa de tese, mas também para sua proposta inicial; e certamente para meu entendimento da vida contemporânea de uma comunidade indígena do sertão, do São Francisco. O que eles oferecem é a oportunidade de perceber que não sou só eu que tenho projetos, e que sua vida como comunidade indígena se ampara, em larga medida, nos próprios projetos societários que me apresentam - e com os quais posso me aproximar e contribuir, ao mesmo tempo desenvolvendo minha tese e apoiando sua luta política e histórica.
Por outro lado, como tudo tem a ver com tudo, não sou apenas um antropólogo em campo, mas também um budista hospedado em aldeia indígena. Um monge, ou ex-monge, em contato com um povo para quem a religiosidade é fundamental, e cujas visões de mundo - e entendimento de suas próprias realidades sociais - são base para a vida e também para a luta política. E um tradutor, cujos conhecimentos linguísticos e interesses literários talvez colaborem, de alguma maneira, com certos projetos de fortalecimento étnico e envolvimento comunitário do povo da aldeia.

Rio São Francisco, na altura de Rodelas, Bahia
Assim como não posso entender que budismo chinês os ocidentais praticam, a menos que compreenda os múltiplos processos de tradução e circulação de conhecimentos doutrinários e pragmáticos vindos de Taiwan, também não poderia entender poesia e ritual tuxá se não atentasse para o que os Tuxá agora me dizem. Se não atentasse para essa realidade etnográfica, sempre móvel, que mostra que tudo tem a ver com tudo e que poesia e ritual - como minha proposta inicial delineava - não são termos interessantes de termos agora. Antes, o que o campo e o diálogo mostram é que os fluxos, interesses e projetos se completam e complementam, e às vezes mesmo se contradizem; mas parece que justamente nesse jogo somos confrontados e acolhidos, e o conhecimento do Outro - nosso conhecimento sobre o outro, nosso conhecimento sobre o conhecimento do outro, nosso conhecimento da Outra parte de nós mesmos - se torna possível.