No instante em que escrevo estas
linhas, estou sentado em frente ao mar. O sol acabou de se pôr, e já escurece
pela praia afora. Imagine-se o leitor recém-desembarcado numa ilha distante,
vendo a traineira que o trouxe rumando ao horizonte e o deixando só com suas
bagagens e anfitriões...
Este não é um texto sobre
Malinowski ou trabalho de campo, entretanto. Como de costume, falaremos de
falar, e isso apenas porque me mudei para outra casa recentemente, para uma
chácara em meio ao mato, zona rural, cercada de roça e pasto, ao lado de um
lago e sem qualquer sinal de internet ou celular. Imagine, agora, em pleno ano
de 2017, em pleno Brasil, um ser humano quase se isolar do mundo das
comunicações por duas, três semanas. Sem poder falar nas redes, sem poder ler
de suas bolhas de informações selecionadas, não tendo a quem bradar sobre
golpe, contra ou a favor, a não ser para vacas, morcegos e pequenos sapos.
Imagine...
Um dos traços mais encontráveis
em diversas tradições místicas e espirituais diz respeito ao silêncio. Ao
isolamento, afastamento também. Diz respeito, de certa forma, ao exercício
atento da atenção, à paciência atenciosa de ouvir o tempo que passa e não se
importar de não poder falar. Melhor: em não desejar falar, em se esforçar para
que falar não seja preciso. Porque, justamente, a fala não é precisa.
Dois recortes etnográficos: 1) diz-se
que um monge budista meditava em sua cela, sozinho, paredes por todos os lados,
e de repente sua percepção captou outros monges conversando no pátio fora.
Inicialmente, ao lado dos dois monges era possível perceber – o meditador
percebeu – seres benfazejos, protetores do Dharma e da prática budista, que
acompanhavam os monges que no pátio conversavam. Depois – o meditador notou,
ainda de sua cela cerrada – os seres benfazejos desapareceram, e em seu lugar foi
possível ver uma presença densa e carregada, como os asuras e demônios que
tentam os seres com ilusões, que os cobrem de raiva, desgosto, discriminação.
Quando mais tarde o meditador encontrou com os dois monges, perguntou sobre o
que falavam naquela tarde, no pátio. Mencionaram que primeiro tratavam da
prática budista, discutiam os ensinamentos do Liberto, compartilhavam de suas experiências
no Caminho. “Até aí, ok, entendo a razão dos benfazejos” – pensou o meditador.
Depois os monges completaram: ainda no pátio, haviam passado a tratar de outros
temas, mais banais e comezinhos, mesquinhos mesmo, como as fofocas do templo e
o exercício humano, demasiado humano, de recriminar o outro. “Teje explicado”,
o meditador concluiu.
2) O xamã vai ao outro mundo, ou
outros mundos. Trava relações com outros seres, faz acordos, amigos, inimigos,
empreende batalhas e presta serviços a diversos seres dos mais diversos. Quando
volta a este mundo, do qual nós não saímos, não se arroga a explicar o mundo
alheio. Não é capaz de explicar o outro universo em toda sua magnitude, em tudo
aquilo que foi experimentado, visto, ouvido, vivido. Traduz, no máximo:
aproximadamente, metafórica e pragmaticamente. Manuela Carneiro da Cunha explica:
Sem comunicação, então,
comunga-se com o ambiente de outro modo. Como se a linguagem articulada não
fosse a única ponte possível para o contato. Como se o ambiente e o ser humano,
esse – este – animal desanimado, distante e distanciado, não fossem dois
elementos totalmente dissociáveis um do outro. Como se não houvesse, de certo
modo, Natureza e Cultura, mas apenas uma vivência una, um tanto natura, um
tanto cultura, um tanto confusa. A percepção do ambiente, talvez como sugerisse
Ingold, exige a percepção da vivência do e no ambiente, pelo e para o ambiente.
Como a vivência do Caminho, a pratica do Dharma em nossa primeira cena,
demandasse dos praticantes uma confusão com o próprio Caminho. Distancie-se,
diria o ser benfazejo, e sua fala logo será imprecisa, desnecessária. Mesmo
prejudicial.
As palavras torcidas, então,
parcialidades relativas, verdades de diversos mundos, não equivalem ao falar
desbragado. Às certezas muitas, às fúrias conscientemente direcionadas – e às
inconscientes também. Estar isolado do mundo das comunicações e das ordens do
dia dão a oportunidade de encher o dia de outras coisas, às vezes esvaziá-los,
às vezes até mesmo dar conta da ordem de dias passados que passaram rápido
demais, em meio ao torvelinho humano das redes sociais.
Uma das questões mais prementes a
diversas tradições, ao budismo certamente, talvez a alguns xamanismos – e também
a minha prática, quer budista, quer acadêmica – diz respeito ao falar. Aos
modos e momentos de falar, e à atenção individual que cada fala poderia manter
sobre si, para não contribuir apenas com cacofonias e desesperanças.
Ainda esperamos, na chácara, que
instalem internet a rádio. É a única forma de voltarmos, ao menos um pouco, à
esta vasta comunicação. Enquanto isso, os bichos.