domingo, 29 de janeiro de 2017

Para abrir o ano com um pouco de feminismo

Enquanto eu estou de molho aqui no hotel em Manaus, deixando o joelho inflamado descansar, decidi estrear o blog em 2017 com um texto sobre feminismo. Feminismo, como outras possibilidades de discussões no campo dos gêneros e sexualidades, é um tema no qual eu gosto de entrar pela tangente, entremeado entre outros assuntos. Esta flanqueada é uma estratégia para driblar a atração gravitacional de certos percursos do debate que conduzem a falsas antinomias e aporias empobrecedoras. Assim, falar diretamente de feminismo como tema principal em um texto, para mim, é pouco usual. Mas nada como duas semanas fora da internet para arejar os pensamentos. Recomendo para todo mundo.

Ao longo do texto farei alusão a mulheres fortes que conheci ao longo dos anos, pessoas preciosas cujas vidas deixam traços de coragem, esperança, sabedoria e resiliência. Gostaria de mencioná-las diretamente, colocar seus retratos, mas parte do respeito que lhes é devido consiste em não torná-las meras ilustrações de meus argumentos, não falar delas sem seu consentimento expresso, ainda que tenhamos convivido, compartilhado conversas e afetos. Falarei de perto, parafraseando a - entre outras coisas - teórica literária feminista vietnamita Trinh Min-ha


[você e eu estamos próximos, nós nos entrelaçamos; você pode estar do outro lado da colina de vez em quando, mas você pode também ser eu enquanto lembra o que você é e o que eu não sou]

Feminismos são discutidos sempre no plural. Por suas lógicas próprias de operação, não existe uma única forma de feminismo. Feminismos existem sempre em relação, seja de complementariedade, seja de oposição. Sismogêneses, diria o - entre outras coisas - antropólogo americano Gregory Bateson. Não buscam uma teoria total, global, que abarquem todos os seres e pontos de vista. Muito pelo contrário. Feminismos são ferramentas de pensamento que nos lembram o tempo todo que não há universalidade, totalidades, holismos. Feminismos se opõem àquilo que denominam como machismo, ou como o patriarcado, ou como opressão às mulheres. As definições do que são machismo, patriarcado ou opressão também variam, posto que constituídas a partir dessa mesma oposição. Uma das grandes questões para o pensamento feminista do século XX foi, aliás, se a opressão às mulheres era um fato universal, presente em todas as formas sociais, sociedades, culturas, e se o seu enfrentamento poderia ser de algum modo unificado. A resposta a esta questão variou conforme o tipo de feminismo que a enfrentava. Feminismos também se definem contrastivamente, mas não necessariamente em oposição, uns em relação aos outros. Isso porque são gestados e em diálogo com outras ferramentas de pensamento, como o liberalismo, o socialismo, o pós-colonialismo, a psicanálise, o ambientalismo, religiões das mais diversas, etc. Sendo assim, cada feminismo não aspira abarcar todos os feminismos, ou mesmo construir grandes consensos. Esse pensamento autoconscientemente parcial é empregado pela - entre outras coisas -  antropóloga feminista britânica Marilyn Strathern para desestabilizar conceitos e categorias da antropologia social, gestada no contexto social inglês, e estabelecer comparações com os modos de conhecimento melanésios, onde ela fez pesquisa de campo. Ao localizar o modo como entendemos as oposições entre público e privado, político e doméstico, produção e reprodução, percebendo como em outras formas sociais essas oposições não são as mesmas, Strathern desloca a questão da universalidade da opressão, investigando como se estabelecem relações de mesmo sexo e entre sexos opostos, sem perder de vista o papel fundamental do gênero como operador de diferenças sociais.

Mulher cuidando de seu porco em um evento de pagamento do preço-da-noiva do grupo Kawelka, Hagen, Papua Nova-Guiné, 1969. Fonte: Steward & Strathern archive.
A prática política implica muitas vezes na formulação de palavras de ordem ou axiomas, mas mesmo eles tem um caráter errante, de modo muitas vezes inconsciente para as próprias feministas, que não estão imunes a um desejo de estabilização. Mesmo as nossas grandes frases, como "ninguém nasce mulher, torna-se mulher" de O Segundo Sexo, da - entre outras coisas - filósofa feminista francesa Simone de Beauvoir, ganham e perdem sentido, conforme variam as enunciações e as associações. Esta frase pode, assim, ser empregada por rad-fems e por interseccionais com efeitos muito distintos. Mas também, e isso é um tanto quanto perturbador, com efeitos muito semelhantes, quando a pluralidade de feminismos assume uma dinâmica de faccionalismo, de identidades essenciais ou rótulos a partir das quais se compete por uma hegemonia discursiva, o que é um grande paradoxo. Esse é um ponto difícil de entender - pelo menos, para mim - porque, como eu disse acima, feminismos pressupõem dissensos, conflitos, embates. E em cada um desses conflitos, os termos em relação se alteram, se misturam, se afetam. Mas estes faccionalismos - que também sofrem as mesmas misturas, mas se recusam a abraçá-las - se inclinam para uma aniquilação do outro que no limite aniquila a si mesmo, posto que estas diferenças só existem em relação e em oposição.

Eu tenho uma pequena teoria de que esse desejo de rótulos identitários é bastante agravado por essa racionalidade burocrática em que nos inscrevemos em fichas, tabelas e formulários com categorias fixas, nas quais devemos nos encaixar. Isso vem de uma racionalidade de estado, governamentalidade, nos termos do - entre outras coisas - filósofo francês Michel Foucault, que gera reciprocamente formas de poder, de saber e de constituição de sujeitos. Mas se espraia, de forma lúdica. As redes sociais, quizes e testes são um jogo obsessivo e efêmero disso. Jogos de RPG e suas fichas de personagem também, mas com a enorme vantagem de estarem sempre nos lembrando de que se tratam de personagens, cuja vida e capacidade de ação escapa a qualquer definição ou estatística, e cuja dinâmica de interpretação de papeis em que o fluxo é interrompido pelos trânsitos e vazamentos entre on game e off game gera um potencial reflexivo. Por isso eu aproximo os jogos de RPG do teatro épico do - entre outras coisas - dramaturgo socialista alemão Bertholt Brecht. (essa última reflexão é, além de um auto-jabá, feita para manter o caráter nerd do blog).

Persona, Ingmar Bergman, 1966.

Há alguns dias conheci uma senhora que viveu a vida inteira em uma comunidade à beira-rio. Quando era criança, teve a oportunidade de ir para uma cidade próxima, estudar na escola. Foi. Teve medo, sofreu escárnios, preconceitos. Voltou logo. Nunca mais quis sair. Conhece de nome as outras comunidades do entorno. Tem filhos, netos e bisnetos espalhados pela região, alguns dos quais viajaram o mundo. Trabalhou na roça, no preparo dos derivados da mandioca, na torra do guaraná. Sabe como cuidar de dor de barriga, desmentidura, como ensinar as meninas a se protegerem durante suas menstruações e gravidezes, quais alimentos podem ser consumidos nas diferentes épocas da vida. Quando acorda, antes do amanhecer, varre o entorno da casa antes de tomar um banho gelado no rio. Acende o fogo para fazer o café, o beiju, a crueira. Faz tudo sozinha, mas é assistida por filhas, noras e netas nas coisas de casa, pelos homens da família nos recursos de fora. Seus poderes tem a ver com a vida na terra, a manutenção de um modo de vida, das relações com a parentela, do cuidado dos seus. Pela sua longa idade, vivência e saber, é reconhecida e estimada por todos, mas não é de falar nas reuniões da comunidade, onde se cerimonializam os processos coletivos de tomada de decisões. Mulheres falam muito menos do que homens nesses espaços, não estão acostumadas a ocupá-los. As mais jovens, algumas líderes comunitárias formadas ainda nos contextos das comunidades eclesiais de base ou as professoras formadas, mudam aos poucos esse cenário. Começam a ter outros poderes, outros problemas. Mudam os modos de vida, inexoravelmente conforme o capitalismo avança, empobrece o solo, a mata e os rios, modifica os padrões de construção das casas e os utensílios que a elas são necessários, transforma as relações de trabalho e geração de renda e os hábitos alimentares, os corpos e suas doenças, e assim, muda o campo das escolhas, das necessidades e dos horizontes de vida. Estas novas mulheres e estas velhas mulheres vivem em admiração recíproca, percebem em seus corpos e em suas relações as transformações do tempo. Sabem que em alguns pontos já não são mais capazes de se comunicar, mas talvez nem precisem. Que comunicação poderia ser absoluta? Não obstante, talvez exista aí alguma solidão.

Mulher cortando estacas de mandioca para plantio. Amazonas, 2015. Foto: Ana Fiori.
Outras mulheres indígenas vivem em contextos de conflitos armados que duram décadas. Em suas pequenas comunidades, convivem com o isolamento que é quebrado de tempos em tempos com a chegada da violência. Os homens da comunidade às vezes ajudam a prevenir que venha dos homens de fora. Os homens da casa às vezes ajudam a prevenir que venha dos homens da comunidade. Os homens de fora às vezes ajudam a prevenir que venha dos homens da casa. De onde vem, afinal, a violência? Ela consiste em efeito dos conflitos armados ou se alimenta de formas locais de assimetrias de gênero? Essas mulheres pensaram nas histórias que se contam sobre a comunidade. Descobriram outras mulheres, nas histórias e na História, em quem poderiam se fiar e se inspirar. Descobriram que poderiam contar os mitos de outros modos, em que as mulheres não aparecem como transgressoras de um tabu essencial que trouxe um castigo, mas como agentes de transformação. Descobriram que a tradição, que dava a um personagem mítico a culpa e o poder de violentar mulheres, também dava a resposta para estas ameaças, que pôde assim ser doravante chamadas pelo nome de estupro coletivo ou violência doméstica, e assim combatidas. Os mitos se pensam através dos homens, disse o - entre outras coisas - antropólogo francês Claude Lévi-Strauss, usando homem como categoria de humanidade. Aqui os mitos se pensam através das mulheres. Tradição também é criatividade, também é transformação, também é reflexividade, nesse assim chamado feminismo comunitário. Que faz face à violência, trazida pelo costume, pelo conflito armado, pelo alastramento do consumo de bebidas alcoólicas.

Enquanto eu estava no interior, um jovem gay foi assassinado em Parintins com requintes de crueldade, segundo o chavão da rádio que chegou aos meus ouvidos. Depois eu soube que se tratava de uma travesti chamada Diana (a quem eu nomeio para honrá-la). Essa notícia doeu fundo na minha carne, como sempre - e é sempre - que morre um dos meus (falo meus no sentido de pertença, não de identidade. Pra mim esta é uma diferença importante. Eu não sou trans, mas não reconheço o termo cis como necessário ou suficiente para mim. Passo longe dele. Bissexual, por sua vez, é um termo com o qual eu converso melhor, porque tenho afeto, carinho, tesão e amor por pessoas que são homens e pessoas que são mulheres. Mas pertencer ao LGBT é uma questão de convivialidade e de partilha, sobretudo). É preciso muita força e coragem para ser travesti, nas capitais e nos interiores. Sinto orgulho por elas nos caminhos das comunidades, onde sequer existem armários, e nas ruas das cidades. Há a vulnerabilidade. A população travesti e trans é assassinada todos os dias, portas e condições de vida lhes são fechadas todos os dias. E há a potência. Da criação de novos corpos, novas subjetividades, a explicitação de um trabalho sobre si e sobre o mundo que cada um de nós faz, mas sem deixar o avesso do bordado à mostra. Deixar visível a inscrição que todas as pessoas fazem em si de relações de mesmo sexo e relações de sexo oposto. Hoje é o dia da Visibilidade Trans. A visibilidade enquanto demanda política diz respeito ao reconhecimento, ao uso do nome social nos documentos oficiais e na vida cotidiana, ao atendimento específico de saúde, a criação de oportunidades de formação e geração de renda, à prevenção à violência. Mas a visibilidade enquanto afirmação política diz respeito a esta celebração das potências da vida, a esses trânsitos e misturas constitutivos. Somos todos híbridos, mas não somos todos iguais. Igualdade é uma palavra traiçoeira. Importante quando oposta à desigualdade. Atônita quando oposta à diferença. Estática quando associada à identidade. A visibilidade trans nos fazer ver nossos trânsitos. Visibilidade Trans é uma ferramenta de percepção. A - entre outras coisas - poetisa feminista lésbica americana Adrienne Rich escreve estes versos, no poema Diving into the Wreck [submergindo no naufrágio], que eu traduzo com timidez abaixo.

This is the place. And I am here, the mermaid whose dark hair streams black, the merman in his armored body. We circle silently about the wreck we dive into the hold. I am she: I am he Este é o lugar. E eu estou aqui, a sereia cujos cabelos negros manam negrume, o sereio em seu corpo blindado. Circundamos em silêncio acerca do naufrágio submergimos no porão. Eu sou ela: eu sou ele

[Tão logo eu publiquei - em 1963 - um livro de poemas que era informado por qualquer consciência de política sexual / me disseram, em impresso, que este trabalho era "amargo", "pessoal", que eu havia sacrificado as métricas de fluxo doce dos meus livros anteriores por uma linha esfarrapada e uma voz grosseira] Adrienne Rich, sobre Diving into the Wreck

Feminismos são muitos, e são muitas coisas para mim, nesse multiverso que me habita. É por ele que eu estranho também termos que são nele engajados, como empoderamento. De que poderes estamos falando? Recentemente revisei uma tese da área de Direitos Humanos que situava o advento do termo empoderamento com certa mudança de enfoque da ONU na virada do milênio, e a criação da ONU Mulheres. Se antes a política era desenvolver economicamente os países pobres para melhorar a condição de vida das mulheres, agora se deveria empoderar as mulheres economicamente para melhorar as economias nacionais. Em alguma medida, trata-se de uma proposta capitalista de endereçar a questão, pouco afeita às redes e relações em que mulheres exerciam poderes, ainda que estas redes e relações possam se beneficiar dessas medidas. Esta tese também associa empoderamento ao reconhecimento nas relações privadas, na estima social e nas instituições, encontrando guarnição nas leis dentro dos Estados Democráticos de Direito. Ou seja, empoderamento responde a um enquadramento social bem específico e a uma noção de pessoa também bem específica. Isso porque formula poder como uma coisa que pode ser deficitária (a categoria jurídica de hipossuficiência vai nessa direção) e que pode ser fornecida e fomentada, poder como algo que pertence e se situa nos sujeitos.
Estive em uma aula de licenciatura indígena, certa vez, em que se debatia o tema da autonomia, que é uma palavra da família do empoderamento, um pouco mais antiga. E talvez bem diferente de um ponto de vista filosófico, porque se situa em correntes de pensamento outras. Mas enfim. Eu estava especialmente curiosa em saber como isto estava sendo traduzido para a língua indígena, da qual eu sei pouco mais que algumas palavras. (Afinal de contas, este é o tema da minha tese). A palavra que utilizaram tem o sentido de gerar, crescer e frutificar, de transformar. É usada por exemplo para falar de atividades dos pajés. Só um lembrete para não tomar de barato os sentidos de empoderamento. O mesmo raciocínio pode se aplicar a estas expressões que os feminismos tem usado para identificar padrões de opressão e violência simbólica - como gaslighting - mas que equiparam formas de produção de verdades e formas de relações muito distintas. Acho muito problemático ver o feminismo transformado em uma espécie de check list de transgressões, porque isso me parece uma captura terrível das possibilidades de criação e transformação.
Tantas descobertas/invenções de si a serem trilhadas. Feminismos que espantam-se com deleite diante das misturas e experimentam novas misturas. Que buscam não a definição obsessiva de particularidades por meio de rótulos e oposições, mas encontram nas fissuras formas de novos agrupamentos (Saravá, Trinn Min-ha e a - entre outras coisas - epistemóloga feminista socialista Donna Haraway). Formas de lutar contra a opressão que não estão focadas na produção pública de culpas, em biografias que são confissões de erros e buscas de redenção (isso é tão terrivelmente cristão, naquilo que o cristianismo tem de menos interessante!). É por aí que eu vou, tropeçando corajosamente.

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