quarta-feira, 16 de novembro de 2016

O Antropólogo na Encruza: A magia antropológica entre trabalho de campo, etnografia e relato oral

Por Leonardo Bertolossi
(guest post)

A antropologia como pensamento e disciplina ocidental em seu gosto pela diferença, se assenta e se constitui na confluência entre a oralidade do saber nativo e a experiência do trabalho de campo produzido pelo antropólogo, e sua inscrição e tradução no texto etnográfico. É nessa economia relacional em suas tensões e contradições que se constitui a magia antropológica como uma teoria vivida.

A antropologia nasce nos museus, é filha do universalismo enciclopédico iluminista e do nominalismo romântico. Em sua pretensão metodológica de ser científica e se afastar da literatura de viagens, a antropologia abandonaria os gabinetes e sua dependência do registro de funcionários coloniais do Estado imperial nas colônias para fundir na persona do antropólogo em campo e sua avaliação em primeira mão a dimensão empírica e existencial  que conformou a singularidade da aventura antropológica como um saber disciplinar.

É atribuído à Bronislaw Malinowski (ao lado de Franz Boas) a invenção do moderno trabalho de campo. Influenciado pelos paradigmas positivistas e cientificistas das ciências naturais, Malinowski preconizara ser possível traduzir o pensamento nativo. Ao antropólogo em pesquisa de campo deveria ser realizada esta tarefa da tradução através da observação participante. Malinowski destacou  a importância da observação da estrutura social, da cultura e do ponto de vista nativo, para ele o espírito desta mentalidade, o que estaria presente na vivência cotidiana e nos “fatos imponderáveis da vida real”.


Se Malinowski foi o responsável pelo moderno método do trabalho de campo com pretensão científica, E. E. Evans-Pritchard viria a destacar a irreprodutibilidade de cada campo antropológico através dos percalços e das afecções que cada antropólogo vive em seu trabalho de campo. Tal qual uma “ciência nômade”, o trabalho de campo envolve variáveis imprevistas, demanda tempo e sensibilidade. Evans-Pritchard já sugeriria o “devir-nativo” recuperado posteriormente pela antropóloga Jeanne Favret-Saada, ao dizer que o antropólogo em campo vive entre mundos. Evans-Pritchard sugere que o antropólogo vá sozinho paras o campo, que se comporte como um cavalheiro e não como um idiota. Se o olho da razão é instrumento do trabalho de campo em Malinowski, o corpo feixe de sentidos e afecções é destaque em Evans-Pritchard.

Malinowski prêt-a-porter num embate com um nativo melanésio desavisado e um tanto blasé.

Influenciado pela tradição antropológica britânica, o brasileiro Roberto DaMatta viria a defender que o trabalho de campo é um ritual de passagem para todo antropólogo, onde acontece o “anthropological blues”. Caberia, portanto, ao antropólogo, afirma DaMatta, transformar o exótico em familiar e o familiar em exótico. Problematizando as fronteiras de pertencimento do eu antropológico em campo, DaMatta destacaria a dimensão posicional e não essencial das diferenças ao diferenciar o íntimo do familiar, por exemplo.

Posteriormente, Clifford Geertz problematizaria o trabalho de campo como lócus da identidade antropológica ao revelar em “A Situação Atual” a profusão de historiadores, geógrafos, economistas e psicólogos realizando trabalho de campo em um mundo cada vez mais globalizado, interdisciplinar e desterritorializado. No esteio da problematização do trabalho de campo,  crítico de arte Hal Foster em “O artista como etnógrafo” questionaria o uso indiscriminado e irrefletido do trabalho de campo pelos artistas na produção de uma alienação do outro produzida através de superindentificações sem questionar o distanciamento necessário ao trabalho do antropólogo.

Recentemente a antropologia contemporânea vem reafirmando criticamente o trabalho de campo antropológico. Bruno Latour ao mesmo tempo em que questiona a centralidade do indivíduo nos métodos da antropologia (algo posto em questão por antropólogos da Escola de Cultura e Personalidade que faziam trabalho de campo coletivamente), Latour sugere que os antropólogos sigam os “atoreselesmesmos” em suas redes transhumanas.

Mas como reter e traduzir o ponto de vista nativo de que falava Malinowski, os fatos sociais totais de que fala Marcel Mauss, a fim de garantir a ciência social do observado que falava Lévi-Strauss? A objetificação da polissemia e da polifonia encontrada pelo antropólogo em campo se daria pela etnografia.

A etnografia fundaria o saber antropológico científico e também a autoria, a autoridade e a autenticidade do antropólogo. A edição dos relatos escritos, desenhos e fotografias presentes nos diários de campo, nos cadernos antropológicos, se daria através de uma miríade de experiências distintas. Em seu “Manual de Etnografia”, Marcel Mauss sugere a inscrição das experiências nativas em níveis distintos como o parentesco, a vida religiosa e ritual etc. Em sua teoria sobre a cultura, Malinowski também enfocaria a vida nativa em macroestruturas. Outras etnografias, no entanto, se constituíram a partir dos encontros do antropólogo com seus nativos, como a famosa etnografia de Evans Pritchard sobre a magia e os oráculos dos Azande. Muitos antropólogos conciliavam em sua vasta produção uma etnografia mais impressionista e próxima dos informantes nativos, e outras preocupadas com as macroestruturas e suas funções, sem a presença visível de indivíduos no texto etnográfico.

Dentre diversas etnografias importantes para a tradição clássica da disciplina, “Tristes Trópicos”, de Claude Lévi-Strauss, atingiu uma repercussão inesperada e se tornou best-seller fora dos círculos acadêmico-intelectuais da França. Misto de autobiografia, literatura de viagens e etnografia, “Tristes Trópicos” retrata também as agruras e o tédio do antropólogo em campo. O livro seria problematizado posteriormente por Clifford Geertz em “Obras e Vidas: O Antropólogo como Autor”.

Lévi-Strauss numa crise existencial e uma tristeza profunda entre os Caduvéu e os Nambiquara no Brasil.

E é Geertz quem iniciará um verdadeiro Raio X na antropologia, segundo Michael Taussig, ao questionar as ambições cientificistas da disciplina e destacar a intervenção do antropólogo na vida nativa. Geertz retira a cultura do cérebro e assenta no texto, entendendo a relação entre antropólogo e nativo em campo como uma conversação e interpretações recíprocas. Se a cultura é um texto interpretado diferentemente por cada nativo, a etnografia é uma interpretação de interpretações. Geertz se propôs também a encarar a produção etnográfica como um campo antropológico tendo analisado a escrita de diferentes antropólogos e seus diferentes estilos.

Alunos de Geertz, como James Clifford, viriam a acentuar a autocrítica antropológica que se deu sobretudo nos anos 80 ao questionar as políticas e as poéticas de representação textual antropológica em “Writing Culture”. Clifford, dentre outros antropólogos, criticaram a economia textual da etnografia como alegorias mantenedoras das relações de poder e do colonialismo “kármico” da disciplina. O “estar lá” da antropologia no at home entra em suspeita, há a crítica da cultura como estereótipo e estigmas colonialistas no texto, a etnografia é associada às colagens da estética surrealista e ao gosto primitivista desta vanguarda artística.

Uma profusão de intelectuais latinos, africanos e asiáticos viria a questionar a autoria, a autoridade e autenticidade da etnografia como projeto político e científico antropológico. Se Marcus e Fischer defenderiam a antropologia como crítica cultural e auto-reflexividade a partir do encontro com a diferença, Nicholas Thomas e Lila Abu-Lughod escreveriam contra a etnografia, questionando qual o lugar da etnografia num mundo transnacional e repleto de dissemi-Nações culturais, termo usado por Homi Bhabha.

Como alternativas ao mal-estar e à melancolia das críticas pós-modernas e pós-coloniais surgiram uma variedade de etnografias experimentais reenquadrando e reencenando o texto antropológico em boxes, metade da página apenas com reproduções do discurso nativo, metade da página com as interpretações antropológicas. Imagens fotográficas foram problematizadas, assim como o texto museográfico dos antigos museus de onde a antropologia surgiu. Como estratégia pós-colonial combativa aos silenciamentos, invisibilidade e colonizações históricas, “dar voz ao nativo” se tornou a ordem do dia. O “retorno do nativo” de que fala Adam Kuper produziu também a “indigenização ocidental” e antropológica de que fala Sahlins. O animismo e certo neoromantismo ambiental e corporal voltaram à cena nos anos 90, indígenas norte-americanos e canadenses se tornaram curadores de museus, produziram arte contemporânea, adentram cada vez mais os programas de pós-graduação em antropologia e produzem a sua própria auto-antropologia.

A etnografia foi, portanto, se transformando ao longo da história da disciplina. Evitando estar associada à literatura de viagens, a etnografia foi enquadrada em imaginações científicas e experienciais, era matéria-prima descritiva para posteriores análises etnológicas, passou por um intenso raio X pós-moderno e pós-colonial, e teve seu efeito capturado pelos antigos nativos agora porta-vozes de seus próprios discursos etnográficos como as ficções persuasivas eficazes de que nos fala Marilyn Strathern.

E qual o estatuto e a localidade do relato oral na encruzilhada política e epistemológica da antropologia? É importante evocar aqui a relevância a proeminência da oralidade e do discurso em nossa própria antropologia nativa ocidental e suas matrizes cosmológicas judaico-cristãs. Das revelações da voz divina bíblicas até as confissões cristãs e psicanalíticas, a oralidade encarna a presença do invisível e tem estatuto de verdade. Antes da burocratização do mundo ocidental e sua conversão fetichista-patrimonialista em uma sociedade do papel e do arquivo, os acordos jurídicos e legais na Idade Média eram realizados oralmente.

O outro exótico que interessou a antropologia clássica como disciplina oitocentista e filosofia ocidental fora visto como selvagem e bárbaro antes de ser considerado primitivo, revela Adam Kuper. Sob o signo da falta o outro selvagem – como o Caliban da Tempestade de Shakespeare – sequer conseguia articular uma fala compreensível, diziam os seus colonizadores europeus. Seus grunhidos e sons guturais estariam fora da ordem do discurso, se pensarmos com Michel Foucault. Coube ao antropólogo moderno, após a primeira crítica ao narcisismo ocidental em “Os Canibais” de Montaigne, de recuperar a fala nativa e sua verdade.



O relato oral e o saber nativo foram vistos no alvorecer da disciplina antropológica como crença e pensamento pré-lógico por Lévy-Bruhl, fora positivado como pensamento selvagem por Lévi-Strauss, um pensamento humano. Se os evolucionistas entendiam a oralidade nativa como índice de uma mentalidade irracional, e se a antropologia cognitiva contemporânea ainda o concebe como “aparentemente irracional”, representação semi-proposicional, Lévi-Strauss destacou que todo pensamento é relacional, associativo, classificatório e simbólico independente da versão/variação cultural escrita ou oral em que se manifeste. Influenciado pela psicanálise, pela linguística e pela geologia, Lévi-Strauss vai sugerir que as erupções orais nativas tem inteligibilidade e discurso, e expressam um inconsciente humano estruturado como linguagem.

Após a positivação da oralidade discursiva nativa, a apropriação do antropólogo da mesma foi posta em questão. A polifonia e a polissemia discursiva encontrada no campo deveria ser traduzida pela ventriloquia antropológica de que maneira? Ampliar os horizontes narrativos, como sugeriu Pina Cabral? Evocar equivocações e entender a voz nativa como filosofia outra, conforme Viveiros de Castro? Observar o que eles dizem mas também o que eles fazem, conforme preconizou Eunice Durham?

E como os antropólogos devem entender e se relacionar com as vozes nativas performativas e refletivas em situações interétnicas como a invenção de etnias que fala Fredrik Barth, e a cultura com aspas de que fala Manuela Carneiro da Cunha? Quais impactos nas diferenças culturais intensivas da invenção de uma oralidade nativa performativa-identitária diante do Estado?

Margareth Mead curtindo um devir nativo com as nativas-informantes-amigas de Samoa

Ainda no âmbito das questões pós-modernas e pós-coloniais, Talal Asad fez uma importante crítica à pretensão dos antropólogos de objetivarem o discurso nativo numa totalidade redutora e estereotípica, uma fixidez racista diria Homi Bhabha. E como considerar as diferenças orais nativas como desigualdades interseccionais e suas totalizações essencializadoras estratégicas? Qual o lugar do antropólogo diante do nativo, mas também informante, interlocutor e até “amigo”, para alguns antropólogos? Como evitar reificar a oralidade nativa como discurso da diferença e considerar as fronteiras frágeis dos grandes divisores; assim como o contágio na persona do antropólogo das contra-interpretações nativas, de que fala Roy Wagner?


Stephen Tylor na escrita histérico-compulsiva e nativo com preguiça da tara antropológica ao fundo.
Visualidade, oralidade e a escuta mobilizaram antropólogos em seus encontros com a diferença. Enquanto historiadores orais purificam a subjetividade da oralidade dos depoimentos obtidos, diferenciando história e memória, qual a distância ou proximidade de os antropólogos, agora às voltas com as naturezas do corpo nativo e suas habilidades no ambiente e na vida, devem ter diante da fala nativa? Se a antropologia não é a fala branca, cisgênero, heterossexual, ocidental moderna da antropologia e tampouco é “dar voz ao nativo” e dormir com a consciência tranquila e uma etnografia sem crítica, é uma teoria do encontro e da fantasia da comunicação e da tradução plena? Estes impasses e angústias persistem como fantasmas das fantasias e ficções das antropologias em curso entre campo, voz nativa e etnografia.

_______________________
P.S: Esse texto é uma prova escrita realizada para o concurso de professor do magistério superior de teoria antropológica da Universidade Federal Fluminense. Fotografei a prova ao pedir para ver a nota da banca e cogitei pedir revisão, mas desisti. O concurso teve 61 candidatos inscritos concorrendo para uma vaga, 32 estiverem presentes e apenas 13 realizaram a prova didática. A nota de corte era 7 e eu obtive uma média de 6,6 dos cinco avaliadores. Esse ponto de prova (trabalho de campo, etnografia e relato oral)  e outro (sistemas de conhecimento e antropologia da educação) não constavam no edital  e foram acrescentados na hora da prova, a despeito do questionamento dos candidatos. Este é um tema de domínio de todo antropólogo e causa estranheza que apenas de 13 candidatos tenham obtido notas acima de 7 (na média dos cinco avaliadores ou na maioria das notas emitidas?), tanto que um pedido de recurso na nota levou a uma reclassificação significativa.  Ao contrário do que preconizava a antropologia mencionada acima, com seus ideários bem intencionados e benevolentes, na antropologia universitária dos concursos o outro é um eu meritocrático, avaliado por uma banca através de um concurso obscuro e com regras e critérios nada transparentes.