domingo, 23 de outubro de 2016

Vamos falar de Star Trek?

(post para minha mãe, dona Rolinka, que me fez a trekkie que eu sou)

Acho que adiei por demais falar aqui de ficção científica. Falar de verdade, digo, não apenas fazendo uma citação en passant em textos sobre outros assuntos. Oportuno para esta semana seria falar de Black Mirror e seus alertas distópicos sobre o futuro-que-já-é. Nas redes sociais, é disso que se está falando. Mas meu coração pede há muito tempo que eu ensaie alguns avanços pelo espaço, a fronteira final, com as viagens da Nave Estelar Enterprise.

Esse é o papel de parede do meu computador ;)


Eu sou apaixonada desde criança por Jornada nas Estrelas, na época em que a série clássica e, depois, a Nova Geração, passavam na Record no início dos anos 1990, um pouco depois de Silvio Santos ter trabalhado na sua venda para Edir Macedo (que coisa, não?). Minha mãe e meu irmão adoravam Spock, o vulcano lógico e mentalmente superior aos seus colegas da Federação. Eu sempre preferi McCoy, seus arroubos e suas esperanças. Do capitão Kirk todos gostávamos, mas ele era demasiado o cowboy do espaço valente e pegador para ser o favorito de alguém. De toda forma, um dos aspectos que sempre me encantou em Star Trek foi a apresentação de dilemas de difícil solução, onde a moralidade que traça fronteiras entre o certo e o errado, o bem e o mal, era insuficiente. Uma das lembranças mais nítidas que eu tenho é estar deitada no tapete peludo em frente à TV, assistindo The Menagerie, vendo Spock enfrentando a corte marcial por levar o capitão Pike (protagonista original do episódio piloto da série, "The Cage") para o planeta proibido Talos IV. No final do episódio, descobre-se, Spock quer que Pike seja novamente envolto nas ilusões que os talosianos projetam em seu "museu" de espécies alienígenas. Assim Pike, que está com o corpo terrivelmente alquebrado devido a uma missão prévia, poderia ter uma vida plena novamente, mesmo que dentro da "gaiola". Este tema, de trânsitos entre virtual e real, liberdade e controle, felicidade e dever, estão ali em Black Mirror também. Mas uma coisa interessante em Star Trek, como uma narrativa de projeção de otimismo no contexto da Guerra Fria, é que todos estão empenhados em fazer o melhor, ainda que discordem.

Pike na cadeira

Encantava-me a ponte da Enterprise, multinacionalista. O capitão era logicamente americano, James Tiberius Kirk, cujo nome parodiava o famoso capitão James Cook, aquele que foi tomado pelo deus Lono, reverenciado e depois morto pelos habitantes das ilhas polinésias (como Marshall Sahlins conta em As Ilhas de História, sendo depois contextado pela crítica pós-colonial de Obeyeskere). Kirk era intrépido, tendendo a ignorar alguns regulamentos da Frota Estelar (notadamente a Primeira Diretriz), esgarçando os limites da nave, de seus tripulantes e do humano, tornando-se lendário. Americano também era Leonard McCoy, o oficial médico e a consciência do senso comum do grupo (lembrei dele no último filme dos Vingadores e o papel atribuído ali ao Arqueiro Verde Gavião Arqueiro). O oficial de ciências Spock, por sua vez, trazia o conceito interessante de mestiço, meio-humano, meio-vulcano, lutando para pertencer à cultura em que foi criado e ser um Vulcano sem defeitos, mas também tendo que ser um mediador entre mundos. Pavel Andreievich Checov entra como navegador, como o "novinho" e como o russo que prova que as guerras na terra finalmente cessarão (havia na narrativa a previsão de uma Terceira Guerra Mundial pelo começo do século XXI. Eu sempre achei que, como as guerras nunca cessam e de fato estão pelos cinco continentes, não haveria um evento histórico assim designado. Mas posso estar errada). Sulu, o oficial de leme, foi colocado ali para ser o asiático genérico (Orientalismo, oi?), mas tornou-se naturalmente o oficial japonês, ganhando um primeiro nome Hikaru, em um romance de Star Trek escrito pela Vonda McIntire ("O Efeito Entropia", li quando tinha uns dez anos e desde então me apaixonei pela palavra entropia). Montgomery Scott é o meu segundo favorito, porque seu papel de engenheiro é basicamente fazer a Enterprise performar ações que ela não foi projetada para fazer. Anarquizando a ciência, sempre gostei disso (ainda bem que eu não fui para as Exatas, hein? Poderia, me dava bem com matemática, química e física no colégio). E Uhura, é claro, que só lentamente eu fui entender como mais do que a telefonista da nave. E a enorme quebra de paradigmas que era uma mulher negra na Ponte de Comando. E o quanto Nichelle Nichols é uma mulher incrível. Mas eu só me liguei que a personagem era de fato africana ao rever "The Man's Trap", em que ela encontra no corredor um alienígena disfarçado que fala com ela em swahili. Me lembro de ter pensado "ainda bem que no futuro outras línguas além do inglês ainda existem na terra".

Notem o cabelo Beatle de Checov


E o multinacionalismo da ponte da Enterprise era extensível à modelagem da Federação dos Planetas Unidos, a versão interplanetária de uma ONU que teria dado certo em termos de regulação interna. Os planetas, afinal, não deixaram de ser pensados em um formato de Estado-nação, em uma certa limitação da imaginação cosmopolítica. O limite da alteridade e da intransponibilidade diplomática estava além. Os inimigos eram aqueles alienígenas pouco razoáveis. Os guerreiros klingons e os traiçoeiros romulanos, apartados há milênios dos evoluídos vulcanos. A Zona Neutra, o espaço por onde não se devia trafegar, era algo como uma alegoria à Cortina de Ferro da Guerra Fria, mas como toda fronteira, um local de encontro e negociação. A Primeira Diretriz, que impedia o contato e a interferência com "planetas e raças menos evoluídos", refletia os dilemas de uma outra forma de isolamento ao endossar certas noções de evolução de base tecnológica. Ao mesmo tempo, uma tentativa de ética humanista em um cenário pós-humano, que apostava que a violência é o último refúgio do incompetente, pra usar a frase célebre do Isaac Azimov (que é largamente homenageado em A Nova Geração).

aka monopólio de tecnologia

Creio que a maioria dos fãs de Jornada nas Estrelas tem sentimentos ambivalentes em relação ao reboot da série de 2009. Tendo passado a vida inteira ouvindo os fãs de quadrinhos se queixando, eu acho que estava escaldada de certa forma. Star Trek (2009), Star Trek Into the Darkness (2013) e Star Trek Beyond (2016) alteram não apenas a linha do tempo, mas a dinâmica entre as personagens. Scotty ganha mais destaque. Em homenagem à militância do ator original George Takei, Sulu torna-se gay (embora seu beijo tenha sido censurado do terceiro filme). E Spock se envolve com Nyota Uhura, que passa a fazer o contrapeso emocional nos dois primeiros filmes, em uma chave bastante diferente do McCoy original.






A mudança de Spock é o que mais me interessa. O Spock clássico de Leonard Nimoy vivia o dilema dos mestiços, de viver entre dois mundos e ser algo como um eterno forasteiro, insuficiente aos olhos de seu pai, o Embaixador Sarek. Por isso, seu controle emocional e ética vulcanos eram sempre redobrados. E por isso é tão especial que ele tenha transferido seu espírito, seu katra, justamente para McCoy, ao morrer no final do filme The Wrath of Khan (Cumberbatch que me desculpe, mas sua caracterização como Khan no reboot ficou mais do que péssima, em parte por causa do roteiro ruim de Into The Darkness). Eu acabei hoje de ler o romance Sarek, de AC Crispin, ambientado no cenário original. É muito bom para pensar a relação entre Sarek e Spock (com os contrapontos da mãe Amanda e do meio irmão Sybok, que aparece no filme The Final Frontier como uma espécie de guru). O Spock de Zachary Quinto é o Spock da diáspora, filho de um mundo aniquilado, um dos últimos remanescentes de sua raça. Por isso, trata-se de um Spock menos preocupado em ser impassível, mais emotivo, mais humano talvez. Daí seu dilema em Star Trek Beyond, em deixar a Frota Estelar e suas obrigações militares para fazer o salvamento do que ainda resta de Vulcan, construindo uma colônia com os sobreviventes que também não estavam no planeta destruído. Este é o tema de suas conversas com Uhura, que denomina como frieza o que é o distanciamento necessário para o trauma do genocídio vivido (O que é decepcionante. Apesar da maior participação de Uhura, tenho para mim que sua caracterização ficou mais machista, pois ela é um tanto egocêntrica e reativa demais, e age demais em função de Spock).

Não é legal quando seu planeta natal é consumido por um buraco negro


Enfim, ainda escrevo um post apenas sobre os reboots de Star Trek e seus vilões como metáforas das ansiedades contemporâneas. Porque todas as narrativas são, em alguma medida, narrativas de seu próprio tempo. Mas quis fazer um post (textão) falando da minhas impressões e relações com personagens que seguem comigo, próximos ao coração.

sexta-feira, 21 de outubro de 2016

Nota sobre o after party da democracia

Estou em Santos, onde resido. Pelo menos segundo meu domicílio eleitoral. Foi aqui que nasci e onde mora minha família, onde está a maior parte de meus livros e parte considerável de minha burocracia. Título de eleitor, agência bancária. Tendo saído há mais de década, foi aqui que larguei as instituições, levando comigo só algumas poucas, tipo as religiosas, algumas acadêmicas, e um tanto de intuições sobre o fazer do mundo.

Digo isso porque entrei no cartório eleitoral da minha Zona para pagar a multa, deixe-me ver, de R$ 3,51 por não ter participado da última festa da democracia. Tampouco justifiquei no dia, porque precisava limpar a casa e regar as plantas, e ir pra praia, e faço votos de que isso seja sempre mais importante que o sistema de votos universais. Mas não pretendo utilizar este espaço para uma apologia ao voto nulo, vote nulo, mas sim para relatar o que ouvi.

Com a chuva do lado de fora, entrei no cartório enquanto um servidor passava o pano no chão da entrada. Ele me olhou quando abri a porta, eu sorri, dei boa tarde e ele de volta. Logo pedi o pano para não sujar o que ele acabara de limpar, e limpei meus pés. O servidor da Justiça Eleitoral largou o pano de chão e foi sentar detrás do balcão, e me atendeu.

“Vim regularizar minha situação, não votei nas últimas eleições. Nem lembro exatamente o procedimento, mas é aquela multa.”

“Aham.”

Enquanto isso, uma senhora chegava ao cartório e sentava no balcão ao lado, sendo atendida por um atendente bem menos simpático. Vacilando um pouco, ela disse “Oi, eu não votei na última eleição e...”

“E por quê?”

“É que... não estava na cidade.”

“Mas estava no país?”

“Sim.”

“Todos os cartórios atenderam as justificativas de ausência, no dia mesmo. Estavam todos abertos. A senhora deveria ter resolvido isso.”

“É. Eu... não justifiquei porque meu filho... na verdade eu precisei isso, aquilo e mais aquilo outro, aconteceu isso, aquilo e mais aquilo outro, etc”

 
A última fala, claro, não é uma transcrição fiel, mas acho que o espírito do encontro está marcado. Sem saber exatamente o que fazer por não ter votado, a senhora se colocou frente a uma autoridade que, sabendo bem o que faz em seu trabalho, resolveu reprimendar a senhorinha. Ela não estava em posição de afirmar sua autonomia, digamos, por não ter votado; aquele espaço era um reduto da democracia oficial, da instituição do Estado. Ela fora pega no erro, pelo menos assim pensavam ela e o atendente, e por ser pega no erro já chegou no balcão com a defesa tentativamente alta.

Enquanto isso, meu atendente e eu não trocávamos palavra, até porque ele em segundos preenchera meu formulário, imprimira a guia de pagamento e me dissera “Pague em qualquer caixa eletrônico, banco ou lotérica para dar baixa”, e eu saí antes de saber como a senhora continuaria, se é que continuaria, levando bronca da democracia.

Andei algumas quadras até a casa lotérica, paguei a multa com moedas no valor exato – na verdade, R$ 3,50, espero que o Estado não venha me cobrar um centavo – e voltei ao cartório. Tudo rápido, sem muita conversa, porque eu razoavelmente sei as peças que precisam ser mexidas nesse jogo eleitoral. Na parte que me cabe, claro.

De volta à Zona, só meu atendente continuava no balcão, a senhorinha havia ido embora, e o outro funcionário conversava com outros funcionários no fundo do salão. Entreguei a Guia de Recolhimento da União paga, sentei para esperar a declaração impressa e assinada, e aproveite para perguntar “Vocês vão fazer cadastro biométrico?”. O atendente fez que sim com a cabeça. “Já começamos, desde o fim de 2015 até o começo deste ano.”

Ensaiei um “Nem moro aqui” ou um “É que vivo viajando”, mas deixei pra lá. Ele continuou: “Uns 10% dos eleitores já fizeram. Por enquanto, é com agendamento. Marca-se a data, vem aqui e cadastra. É rápido.”

“E é obrigatório?”

“Ainda não. Mas é bom fazer logo, sabe como é brasileiro: quando for obrigatório, vai todo mundo vir correndo.”


Sei como é brasileiro. Pensei rapidamente no atendente foucaultiano passando um sabão na senhora anarquista, no próprio atendente que me atendia sabendo como é brasileiro, na obrigação do voto e da impressão digital. Há um controle pervasivo dos corpos, como sabemos, mas há também um controle pervasivo e sempre presente das mentes, das expectativas, do lugar ocupado por cada cidadão (sic) em toda cidade, vila, aldeia, em cada estado do Estado.

Diferente da senhora trêmula que se apresentava à democracia, naquela situação específica eu sabia o caminho das pedras, e a democracia que me atendeu sabia que eu sabia. Não havia jogo possível ali, a menos que ele realmente quisesse encrencar – possibilidade real, dados os pequenos e nem tão pequenos poderes – mas ele não quis. Simplesmente fez girar a máquina burocrática que me permite ser cidadão (sic) ao preço bienal de R$ 3,51.

“Precisa da declaração definitiva agora?”, ele perguntou. “Para tirar passaporte, algo assim?”

“Não, não preciso. Por quê?”

“Porque a certidão que estou dando é provisória. A partir de 09 de novembro, pelo site, você expede a definitiva. Para a Justiça Eleitoral, as eleições ainda estão em curso, por isso. O sistema ainda está aberto.”

Manifestações por democracia real na Espanha, 2011.

Saí de lá pensando que o sistema sempre estará aberto, por mais que atendentes da justiça façam parecer que não, por mais que façam parecer que há um muro além do qual não é possível seguir, que há cartórios panópticos abertos durante os pleitos, esperando cidadãos (sic) tremerem frente a avatares da democracia. Mas vocês sabem como é brasileiro: eu posso estar errado.