segunda-feira, 5 de setembro de 2016

Julgamentos e histórias


Clio e seus pergaminhos, que não são os autos do processo


"A história os julgará". Acho tão curiosa essa expressão que anda circulando pelos mais diferentes enunciadores, destinada a alvos também muito diversos. Esta é uma frase que joga muitos jogos ao mesmo tempo, e acho que vale cá uma paradinha para pensarmos sobre ela.

Que história é essa, afinal de contas? História é daquelas palavras com muitos usos e sentidos. Em português, muitas vezes, temos que nos haver com as dificuldades de traduzir aquilo que os usos da língua inglesa consagraram como a distinção entre story (mais próxima da narrativa, do conto, do causo, aquilo que por vezes chamamos de "estória" - um vocábulo que nem todo mundo reconhece) e history, pensada como a História.

A História também tem vários sentidos, muitas vezes diametralmente opostos. Deve ser por isso, aliás, que se grava a palavra com H maiúsculo, essa letra que a gente pode colocar de ponta cabeça e que aponta para várias direções ao mesmo tempo (Este não é um comentário de etimologia ou filologia).

Como a História é uma espécie de Outro da Antropologia, constantemente temos que nos haver com vários sentidos de história. Há um belo texto do Márcio Goldman, antropólogo do Museu Nacional no Rio de Janeiro, chamado "Lévi-Strauss [saravá, vovô] e os Sentidos da História". Lá, Goldman retoma três sentidos possíveis de história. A chamada história dos historiadores, que é a história como historiografia, cujo estudo disciplinar baseia-se muito em registros escritos; a filosofia da história, tal como concebida no pensamento ocidental, que pensa a história em princípios de causalidade; e a ideia de historicidade, que explode uma noção única de história e se volta para como diferentes experiências culturais pensam a passagem do tempo, os ritmos, as durações, as transformações e repetições, etc.

Mesmo as nossas filosofias da história transformaram-se muito, tem também suas próprias histórias. Uma dessas histórias é aquela contada por Paul Ricoeur, na primeira parte de Tempo e Narrativa, em que ele traz para a conversa Aristóteles e Santo Agostinho, distantes séculos entre si e não obstante dialogando. Agostinho participa a partir do livro XI das Confissões, que é um lindo livro. Lá, há uma frase infinitamente citada, porque provocativa:

 “Que é, pois, o tempo? Quem poderá explicá-lo clara e brevemente? Quem o poderá apreender, mesmo só com o pensamento, para depois nos traduzir por palavras o seu conceito? E que assunto mais familiar e mais batido nas nossas conversas do que o tempo? Quando dele falamos, compreendemos o que dizemos. Compreendemos também o que nos dizem quando dele nos falam. O que é, por conseguinte, o tempo? Se ninguém me perguntar, eu sei; se o quiser explicar a quem me fizer a pergunta, já não sei.”
Santo Agostinho para colorir. Divirtam-se


Agostinho vai discorrer sobre como não podemos medir o tempo, apenas a percepção de seu decorrer a partir do agora do presente, e de como o passado existe como memória e o futuro como espera. Esta é, é claro, uma apresentação bem rasteira, mas dá algumas pistas para seguir.

Uma delas é que a história não é apenas a passagem do tempo, mas uma forma de habitar o tempo. E este habitar pode colocar em xeque a irreversibilidade do tempo (a tal da entropia). E, como habitantes do tempo, temos que vivemos o presente não apenas como consequência do passado, mas também como aquilo que faz o passado variar, a partir do que se narra no presente.

A história é, pois, feita de lembranças e sobretudo de esquecimentos, o que tem sido apontado como um dos grandes problemas para o amadurecimento da consciência política no Brasil. Esquecemos facilmente dos atos passados dos nossos políticos e poderosos, assim como esquecemos das transformações das paisagens das nossas cidades, esquecemos do que conquistamos como direitos aceitando-os como dádivas clientelistas, esquecemos até mesmo de quem foram os nossos candidatos escolhidos nas últimas eleições e quais eram as alianças costuradas naquela disputa. Esquecemos também que a história que conhecemos (mal), a história ensinada na escola, é uma história cujo conteúdo foi formado por decisões editoriais de grupos de comunicação, editoras, técnicos ministeriais e estagiários fazendo gambiarras enquanto tentam passar de fase no Candy Crush. Sendo assim, de que capacidade de julgar estamos falando quando dizemos que a história vai julgar? Que julgamento poderá ser esse?

É engraçado como a imagem que automaticamente irrompe na cabeça é a de Hitler, julgado e condenado por seus atos hediondos contra a humanidade. Julgado e condenado porque perdeu a guerra, aliás. A ficção científica de boa ou má qualidade visceja em realidades alternativas em que o III Reich teria ganho a guerra e os julgamentos da história seriam outros (a menos que os heróis viajantes no tempo ou em realidades alternativas consigam recolocar o trem da história no trilho certo).

Mas mesmo um evento tão calamitoso como a II Guerra Mundial, ou certos golpes de estado, poderiam receber outras leituras, serem abraçados por outros regimes de historicidade. Poderiam ser presságios para um advento do fim dos tempos e do mundo, como foram para tantas pessoas. E curiosamente mesmo essa escatologia abole o tempo e depois o recoloca. Vivemos tantas narrativas de pós-apocalipse, algumas na imaginação, outras no cotidiano. Inauguram-se tempos fora do tempo em espaços fora do espaço, distopias e utopias que se espelham mutuamente.

Mitos e rituais, por um lado, e jogos e outras formas de entretenimento, por outro, trazem-nos esses deslocamentos a partir de diferentes subjetividades, ou subjuntividades (como se fosse...). Um pouco a distinção em inglês entre make beliefs (fazer crenças) e make believe (fazer de conta). Formas de existência passadas, presentes e futuras que se dão como Devires, como estados potenciais que podem vir a ser ou não e cuja existência nunca é absoluta.

A ideia de uma História que julga pressupõe a ideia de uma história linear, com um sentido único, com causas e efeitos claros e discerníveis em que o passado determina o presente e pode assim ser avaliado, em que o futuro é razoavelmente previsível e pode ser programado. É uma ideia que lida mal com aquilo que Max Weber chamou de paradoxo das consequências, em seu livro clássico "A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo", de que certos efeitos, além de imprevisíveis, podem ser opostos à razão que norteia as escolhas feitas.

Como uma das regras não ditas aqui do ZAP é falar sempre de Úrsula Le Guin, nossa musa da ficção especulativa, eu diria que um dos livros mais interessantes para pensar a incapacidade de se julgar a história é o livro The Dispossessed (1974), que não à toa tem o subtítulo de An Ambiguous Utopia, e que faz parte do Ciclo Hainish. Em português o livro ganhou traduções como Os Despossuídos ou Os Despojados. O livro é ambientado em mundos gêmeos, Urras e Anarres. Urras é claramente uma alegoria ao mundo da Guerra Fria, com potências similares aos EUA e à União Soviética. Anarres, por sua vez, para onde um terceiro grupo se exilou há décadas atrás no intuito de construir uma sociedade em moldes anarco-sindicalistas, é um mundo com condições de vida mais duras. Anarres vive uma sociedade de abundância, em que as pessoas não estão de fato desprovidas de nada porque não se opera com a ideia de propriedade, o que não os livra da ameaça da fome durante invernos mais rigorosos. O idioma falado em Anarres busca ao máximo suprimir a primeira pessoa, de modo a destituir o ego de seus falantes, o que condiciona pensamento, linguagem e cultura. O enredo gira em torno de Thevet, um físico que busca desenvolver uma Teoria Geral do Tempo, e para isso, precisa buscar recursos científicos em Urras. Thevet faz algo imperdoável para seus colegas exilados e retorna para Urras, criando várias formas de comoção política. Thevet acaba sendo uma espécie de anti-herói cultural, pois enquanto lida com as questões de tempo e simultaneidade conclui que "a verdadeira jornada é retornar", algo que é feito de muitas maneiras ao longo do livro, inclusive enfrentando certos julgamentos da história que são tão ambíguos quanto sua utopia.


Pra vocês não se perderem por aí


Há um conceito perigoso de História por trás da assertiva de que a História vai julgar. Uma teleologia da História que pode criar a ilusão de que somos menos responsáveis pelo passado que já foi julgado e processado, enquanto somos tão pouco responsáveis pela nossa memória. E aqui trago a sexta Tese sobre o Conceito de História de Benjamin:


Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo "como ele de fato foi". Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo. Cabe ao materialismo histórico fixar uma imagem do passado, como ela se apresenta, no momento do perigo, ao sujeito histórico, sem que ele tenha consciência disso. O perigo ameaça tanto a existência da tradição como os que a recebem. Para ambos, o perigo é o mesmo: entregar-se às classes dominantes, como seu instrumento. Em cada época, é preciso arrancar a tradição ao conformismo, que quer apoderar-se dela. Pois o Messias não vem apenas como salvador; ele vem também como o vencedor do Anticristo. O dom de despertar no passado as centelhas da esperança é privilégio exclusivo do historiador convencido de que também os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado de vencer.

 E, ao mesmo tempo, essa expectativa de julgamento da História cria a fantasia de que poderemos dar à História um sentido unívoco no e para o futuro, encarregado de dar inteligibilidade a este presente, a discernir suas causas e efeitos quando ele também se tornar passado, e de encontrar a medida certa de justiça para julgá-lo.

Angelus Novus, do Paul KLEE. Pobre anjo da história, descabelado como eu.


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Por falar em tempo, era para eu escrever semanalmente às terças-feiras aqui. Claro que isso não aconteceu. Eu funciono no Tempo Nuer. O Leandro sabe disso. Mas tudo bem, o que vale é a intenção.

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Meu mestrado é sobre histórias/narrativas em um julgamento. Perspectiva simetricamente oposta. Que coisa louca.

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