domingo, 4 de dezembro de 2016

Algumas coisas sobre 3%

3% traz certa alegria para meu coração nerd. Uma iniciativa brasileira de produzir uma série distópica, assumidamente pertencente ao gênero da ficção científica, com suporte da Netflix e elenco global, traz ventos frescos para as nossas possibilidades narrativas no campo da teledramaturgia.

3% foi feita a partir de um roteiro escrito por alunos da USP, e teve episódios piloto lançados como websérie, para conseguir atrair atenção para uma produção mais substantiva. Conseguiu. Um dos diretores de 3% é César Charlone, que participou da equipe de Cidade de Deus e Ensaio sobre a Cegueira. Algo da estética desses filmes é reconhecível nos episódios de 3%, em que a visualidade muitas vezes salva o argumento fraco.

3% começa em marcha pelas ruas. Estamos no Continente, o Lado de Cá. Não sabemos de início se estamos em uma favela ou em algum cenário pós conflito. É difícil discernir entre construções vernaculares com materiais baratos e escombros de antigos prédios. Corpos brancos e negros seguem, em desmazelo, sujos e vestidos de farrapos. Mas algo da família e da comunidade se apresentam. Abraços das mães aos filhos que vão. Um pastor colorido que prega a salvação, com um manto de retalhos coloridos. Uma louca no sopé do morro que leva ao processo, quase uma versão de Arthur Bispo do Rosário. Ela não assume o papel de enunciar a Verdade sagrada dos loucos, contrapondo-se à loucura institucional desse futuro. Ela é o resto do processo, a amaldiçoar aqueles que saem em jornada, o Velho do Restelo que amedronta aqueles jovens em busca do caminho para o Maralto, terra utópica para onde vão os 3% que serão selecionados no Processo. Ao Processo se contrapõe a Causa, apresentada nos termos em que se representa a resistência armada à Ditadura Militar. Células escondidas, comunicações cifradas, palavras de ordem nos muros diante de um povo calado e iludido com promessas vazias de ascensão. Vazias?

Conforme os protagonistas sobem a longa ladeira rumo ao complexo em que se dá o processo, vemos o rochedo molhado de água de alguma nascente à qual a população não tem acesso. O rochedo parece uma muralha que represa os recursos daqueles que vivem nos escombros. É interessante pensar como a imagem do Muro tornou-se mais uma vez forte nos tempos em que vivemos, de Gaza aos desvarios de Trump, ou a Guerra dos Tronos. Mas o Muro de 3% leva a um planalto, em uma cartografia hierárquica que inverte a relação morro-asfalto do Rio de Janeiro.

A arquitetura do complexo do Processo, bem como seus uniformes, realizam o trabalho disjuntivo e traem a ideologia igualitária pregada para aqueles que teriam por mérito sido selecionados. Ângulos quebrados, volumes assimétricos em padrões geométricos, nas roupas e ambientes. Há certo anti-modernismo escancarado. A primeira prova é constituída por uma entrevista em que fica claro certos favorecimentos. Os entrevistadores visualizam projeções de indicadores de aptidão enquanto avaliam os candidatos, em padrões arbitrários travestidos de ciências comportamentais. Impossível não pensar em entrevistas de emprego, em triagens empresariais, trainees, coaching, toda essa cosmologia empresarial que parece tão determinante de dentro e tão absurda de fora. O seriado tenta imprimir um certo automatismo cínico, ao apresentar a fórmula do modo de lidar com o trauma da eliminação, dito aos rejeitados, que pouco sabem o que lhes acontece. Mas este é um dos pontos em que a fraqueza do texto compromete o resultado. A verossimilhança cai por terra quando candidatos e funcionários do processo usam o mesmo vocabulário, pensam do mesmo modo que os candidatos criados na privação, e a hierarquia que deveria ter se incorporado como habitus tem que ser afirmada no conteúdo das frases.

É uma pena, porque este é o momento em que 3% tenta individualizar suas personagens, indicando as idiossincrasias de cada um que acabam sendo premiadas nessa etapa do Processo. O ar non chalant de Joana (a moça safa das ruas), o fanatismo de Fernando (o cadeirante que supera suas limitações), a tranquilidade soberba de Marco (de uma família que tradicionalmente é selecionada, como os jovens de elite que fazem vestibular na FUVEST), o nervosismo treinado de Michele (a heroína da Causa, em busca de vingar a morte do irmão), a amoralidade de Rafael (que trapaceia desde o registro falso implantado atrás da orelha). Em muitas narrativas que assumem este ar de deep play e dark play, onde os jogos assumem um caráter de vida ou morte, é a combinação de diferentes habilidades que rege a dinâmica das etapas percorridas. 3% hesita em assumir esta lógica, porque busca mostrar a arbitrariedade da seleção, sujeita aos humores do diretor Ezequiel, premido pelo orgulho e pela culpa pelo suicídio da mulher e que infringe as próprias regras tentando cuidar do filho dela deixado para trás. Ezequiel não consegue ser nem o fanático autoritário carismático, nem o burocrata astuto, nem o líder alquebrado. É reativo lidando com as armadilhas da fiscal e rival Aline, que também não consegue demonstrar a astúcia necessária a esta posição na narrativa. Os atores fraquejam, desambientados.

Por outro lado, há cenas extremamente bem sucedidas. O episódio 4, Portão, mostra os candidatos, após haverem superado algumas provas, em um ambiente de confinamento, sem água ou comida. Marco assume a organização de times que manipulam coordenadamente alavancas que liberam os suprimentos, produzindo um igualitarismo concertado dos recursos. Mas o desenho da prova é alterado por Ezequiel, e os candidatos são tornados impotentes. É então que Marco forma uma gangue e passa a espancar e roubar os mantimentos dos outros candidatos, com a justificativa de que a prova quer este tipo de liderança "darwinista". É uma imagem familiar. É o presídio virado, é o campo de concentração de Ensaio sobre a Cegueira, é aquilo que os acadêmicos vão chamar de banalidade do mal. Mas, mais interessante do que a opressão dos fracos entre si, é esta nota sobre a mudança das regras pelo diretor Ezequiel. Essa certeza de que não se pode confiar em instituição alguma, porque as regras são arbitrárias e mudam a todo momento. Em síntese, é o nosso estado de exceção permanente.

Um estado que supostamente só deveria existir no Lado de Cá, no Continente, varrido também por gangues. Joana bem fala que não quer lidar com essa porra, pois já lidava fora do ambiente racionalizado ascéptico do complexo do Processo. As cenas de flashback em que Joana foge da gangue e é por eles agredida tem por objetivo elucidar porque Joana falsificou o registro para entrar no Processo, mas nos contam outra coisa. 3% apresenta uma organização social em que a desigualdade é nivelada por uma clivagem geracional. Todos abaixo de vinte anos vivem no Continente, com as mesmas precariedades, selecionados pelo mérito no Processo. As diferenças explicitadas falam sobre a perda da família e de uma rede de apoio anterior ao processo, mas não se fala em raça, classe, gênero. O que nos fala disso são os corpos. Não é a toa que o pseudo-aristocrata Marco seja interpretado pelo ator loiro. Que Joana, interpretada por uma atriz negra, rendida por uma gangue de homens brancos, seja colocada em uma posição que beira o estupro. Que os heróis ideológicos da causa sejam dois brancos, enquanto os dois negros vivem pela astúcia e tenacidade dos sobreviventes. O silenciamento dos marcadores sociais da diferença é ostensivamente artificial, e as palavras do roteiro são traídas pelas imagens.

Os dois episódios finais tentam produzir reviravoltas. Subversivos que se rendem, quando Michele submetida à tortura parece crer que a Causa é uma mentira, Joana que se recusa a assassinar e é rejeitada, volta para o Lado de Cá e revela simpatia pela causa. Mas o ponto mais importante é que para ir à utópica Maralto, é preciso ser estéril, porque a herança e a hereditariedade também perturbariam o mérito. Mas, lembrando que é recomendado aos candidatos eliminados que eles recuperem a alegria e os motivos para viver tendo filhos, o que se percebe é uma terrível divisão do trabalho reprodutivo, em que os pobres produzem corpos para que os ricos os selecionem. Esta política demográfica e sua justificação ideológica, diante de tantas políticas eugenistas que marcaram a história do Brasil, é o que merece aprofundamento, caso haja uma nova temporada.

quarta-feira, 16 de novembro de 2016

O Antropólogo na Encruza: A magia antropológica entre trabalho de campo, etnografia e relato oral

Por Leonardo Bertolossi
(guest post)

A antropologia como pensamento e disciplina ocidental em seu gosto pela diferença, se assenta e se constitui na confluência entre a oralidade do saber nativo e a experiência do trabalho de campo produzido pelo antropólogo, e sua inscrição e tradução no texto etnográfico. É nessa economia relacional em suas tensões e contradições que se constitui a magia antropológica como uma teoria vivida.

A antropologia nasce nos museus, é filha do universalismo enciclopédico iluminista e do nominalismo romântico. Em sua pretensão metodológica de ser científica e se afastar da literatura de viagens, a antropologia abandonaria os gabinetes e sua dependência do registro de funcionários coloniais do Estado imperial nas colônias para fundir na persona do antropólogo em campo e sua avaliação em primeira mão a dimensão empírica e existencial  que conformou a singularidade da aventura antropológica como um saber disciplinar.

É atribuído à Bronislaw Malinowski (ao lado de Franz Boas) a invenção do moderno trabalho de campo. Influenciado pelos paradigmas positivistas e cientificistas das ciências naturais, Malinowski preconizara ser possível traduzir o pensamento nativo. Ao antropólogo em pesquisa de campo deveria ser realizada esta tarefa da tradução através da observação participante. Malinowski destacou  a importância da observação da estrutura social, da cultura e do ponto de vista nativo, para ele o espírito desta mentalidade, o que estaria presente na vivência cotidiana e nos “fatos imponderáveis da vida real”.


Se Malinowski foi o responsável pelo moderno método do trabalho de campo com pretensão científica, E. E. Evans-Pritchard viria a destacar a irreprodutibilidade de cada campo antropológico através dos percalços e das afecções que cada antropólogo vive em seu trabalho de campo. Tal qual uma “ciência nômade”, o trabalho de campo envolve variáveis imprevistas, demanda tempo e sensibilidade. Evans-Pritchard já sugeriria o “devir-nativo” recuperado posteriormente pela antropóloga Jeanne Favret-Saada, ao dizer que o antropólogo em campo vive entre mundos. Evans-Pritchard sugere que o antropólogo vá sozinho paras o campo, que se comporte como um cavalheiro e não como um idiota. Se o olho da razão é instrumento do trabalho de campo em Malinowski, o corpo feixe de sentidos e afecções é destaque em Evans-Pritchard.

Malinowski prêt-a-porter num embate com um nativo melanésio desavisado e um tanto blasé.

Influenciado pela tradição antropológica britânica, o brasileiro Roberto DaMatta viria a defender que o trabalho de campo é um ritual de passagem para todo antropólogo, onde acontece o “anthropological blues”. Caberia, portanto, ao antropólogo, afirma DaMatta, transformar o exótico em familiar e o familiar em exótico. Problematizando as fronteiras de pertencimento do eu antropológico em campo, DaMatta destacaria a dimensão posicional e não essencial das diferenças ao diferenciar o íntimo do familiar, por exemplo.

Posteriormente, Clifford Geertz problematizaria o trabalho de campo como lócus da identidade antropológica ao revelar em “A Situação Atual” a profusão de historiadores, geógrafos, economistas e psicólogos realizando trabalho de campo em um mundo cada vez mais globalizado, interdisciplinar e desterritorializado. No esteio da problematização do trabalho de campo,  crítico de arte Hal Foster em “O artista como etnógrafo” questionaria o uso indiscriminado e irrefletido do trabalho de campo pelos artistas na produção de uma alienação do outro produzida através de superindentificações sem questionar o distanciamento necessário ao trabalho do antropólogo.

Recentemente a antropologia contemporânea vem reafirmando criticamente o trabalho de campo antropológico. Bruno Latour ao mesmo tempo em que questiona a centralidade do indivíduo nos métodos da antropologia (algo posto em questão por antropólogos da Escola de Cultura e Personalidade que faziam trabalho de campo coletivamente), Latour sugere que os antropólogos sigam os “atoreselesmesmos” em suas redes transhumanas.

Mas como reter e traduzir o ponto de vista nativo de que falava Malinowski, os fatos sociais totais de que fala Marcel Mauss, a fim de garantir a ciência social do observado que falava Lévi-Strauss? A objetificação da polissemia e da polifonia encontrada pelo antropólogo em campo se daria pela etnografia.

A etnografia fundaria o saber antropológico científico e também a autoria, a autoridade e a autenticidade do antropólogo. A edição dos relatos escritos, desenhos e fotografias presentes nos diários de campo, nos cadernos antropológicos, se daria através de uma miríade de experiências distintas. Em seu “Manual de Etnografia”, Marcel Mauss sugere a inscrição das experiências nativas em níveis distintos como o parentesco, a vida religiosa e ritual etc. Em sua teoria sobre a cultura, Malinowski também enfocaria a vida nativa em macroestruturas. Outras etnografias, no entanto, se constituíram a partir dos encontros do antropólogo com seus nativos, como a famosa etnografia de Evans Pritchard sobre a magia e os oráculos dos Azande. Muitos antropólogos conciliavam em sua vasta produção uma etnografia mais impressionista e próxima dos informantes nativos, e outras preocupadas com as macroestruturas e suas funções, sem a presença visível de indivíduos no texto etnográfico.

Dentre diversas etnografias importantes para a tradição clássica da disciplina, “Tristes Trópicos”, de Claude Lévi-Strauss, atingiu uma repercussão inesperada e se tornou best-seller fora dos círculos acadêmico-intelectuais da França. Misto de autobiografia, literatura de viagens e etnografia, “Tristes Trópicos” retrata também as agruras e o tédio do antropólogo em campo. O livro seria problematizado posteriormente por Clifford Geertz em “Obras e Vidas: O Antropólogo como Autor”.

Lévi-Strauss numa crise existencial e uma tristeza profunda entre os Caduvéu e os Nambiquara no Brasil.

E é Geertz quem iniciará um verdadeiro Raio X na antropologia, segundo Michael Taussig, ao questionar as ambições cientificistas da disciplina e destacar a intervenção do antropólogo na vida nativa. Geertz retira a cultura do cérebro e assenta no texto, entendendo a relação entre antropólogo e nativo em campo como uma conversação e interpretações recíprocas. Se a cultura é um texto interpretado diferentemente por cada nativo, a etnografia é uma interpretação de interpretações. Geertz se propôs também a encarar a produção etnográfica como um campo antropológico tendo analisado a escrita de diferentes antropólogos e seus diferentes estilos.

Alunos de Geertz, como James Clifford, viriam a acentuar a autocrítica antropológica que se deu sobretudo nos anos 80 ao questionar as políticas e as poéticas de representação textual antropológica em “Writing Culture”. Clifford, dentre outros antropólogos, criticaram a economia textual da etnografia como alegorias mantenedoras das relações de poder e do colonialismo “kármico” da disciplina. O “estar lá” da antropologia no at home entra em suspeita, há a crítica da cultura como estereótipo e estigmas colonialistas no texto, a etnografia é associada às colagens da estética surrealista e ao gosto primitivista desta vanguarda artística.

Uma profusão de intelectuais latinos, africanos e asiáticos viria a questionar a autoria, a autoridade e autenticidade da etnografia como projeto político e científico antropológico. Se Marcus e Fischer defenderiam a antropologia como crítica cultural e auto-reflexividade a partir do encontro com a diferença, Nicholas Thomas e Lila Abu-Lughod escreveriam contra a etnografia, questionando qual o lugar da etnografia num mundo transnacional e repleto de dissemi-Nações culturais, termo usado por Homi Bhabha.

Como alternativas ao mal-estar e à melancolia das críticas pós-modernas e pós-coloniais surgiram uma variedade de etnografias experimentais reenquadrando e reencenando o texto antropológico em boxes, metade da página apenas com reproduções do discurso nativo, metade da página com as interpretações antropológicas. Imagens fotográficas foram problematizadas, assim como o texto museográfico dos antigos museus de onde a antropologia surgiu. Como estratégia pós-colonial combativa aos silenciamentos, invisibilidade e colonizações históricas, “dar voz ao nativo” se tornou a ordem do dia. O “retorno do nativo” de que fala Adam Kuper produziu também a “indigenização ocidental” e antropológica de que fala Sahlins. O animismo e certo neoromantismo ambiental e corporal voltaram à cena nos anos 90, indígenas norte-americanos e canadenses se tornaram curadores de museus, produziram arte contemporânea, adentram cada vez mais os programas de pós-graduação em antropologia e produzem a sua própria auto-antropologia.

A etnografia foi, portanto, se transformando ao longo da história da disciplina. Evitando estar associada à literatura de viagens, a etnografia foi enquadrada em imaginações científicas e experienciais, era matéria-prima descritiva para posteriores análises etnológicas, passou por um intenso raio X pós-moderno e pós-colonial, e teve seu efeito capturado pelos antigos nativos agora porta-vozes de seus próprios discursos etnográficos como as ficções persuasivas eficazes de que nos fala Marilyn Strathern.

E qual o estatuto e a localidade do relato oral na encruzilhada política e epistemológica da antropologia? É importante evocar aqui a relevância a proeminência da oralidade e do discurso em nossa própria antropologia nativa ocidental e suas matrizes cosmológicas judaico-cristãs. Das revelações da voz divina bíblicas até as confissões cristãs e psicanalíticas, a oralidade encarna a presença do invisível e tem estatuto de verdade. Antes da burocratização do mundo ocidental e sua conversão fetichista-patrimonialista em uma sociedade do papel e do arquivo, os acordos jurídicos e legais na Idade Média eram realizados oralmente.

O outro exótico que interessou a antropologia clássica como disciplina oitocentista e filosofia ocidental fora visto como selvagem e bárbaro antes de ser considerado primitivo, revela Adam Kuper. Sob o signo da falta o outro selvagem – como o Caliban da Tempestade de Shakespeare – sequer conseguia articular uma fala compreensível, diziam os seus colonizadores europeus. Seus grunhidos e sons guturais estariam fora da ordem do discurso, se pensarmos com Michel Foucault. Coube ao antropólogo moderno, após a primeira crítica ao narcisismo ocidental em “Os Canibais” de Montaigne, de recuperar a fala nativa e sua verdade.



O relato oral e o saber nativo foram vistos no alvorecer da disciplina antropológica como crença e pensamento pré-lógico por Lévy-Bruhl, fora positivado como pensamento selvagem por Lévi-Strauss, um pensamento humano. Se os evolucionistas entendiam a oralidade nativa como índice de uma mentalidade irracional, e se a antropologia cognitiva contemporânea ainda o concebe como “aparentemente irracional”, representação semi-proposicional, Lévi-Strauss destacou que todo pensamento é relacional, associativo, classificatório e simbólico independente da versão/variação cultural escrita ou oral em que se manifeste. Influenciado pela psicanálise, pela linguística e pela geologia, Lévi-Strauss vai sugerir que as erupções orais nativas tem inteligibilidade e discurso, e expressam um inconsciente humano estruturado como linguagem.

Após a positivação da oralidade discursiva nativa, a apropriação do antropólogo da mesma foi posta em questão. A polifonia e a polissemia discursiva encontrada no campo deveria ser traduzida pela ventriloquia antropológica de que maneira? Ampliar os horizontes narrativos, como sugeriu Pina Cabral? Evocar equivocações e entender a voz nativa como filosofia outra, conforme Viveiros de Castro? Observar o que eles dizem mas também o que eles fazem, conforme preconizou Eunice Durham?

E como os antropólogos devem entender e se relacionar com as vozes nativas performativas e refletivas em situações interétnicas como a invenção de etnias que fala Fredrik Barth, e a cultura com aspas de que fala Manuela Carneiro da Cunha? Quais impactos nas diferenças culturais intensivas da invenção de uma oralidade nativa performativa-identitária diante do Estado?

Margareth Mead curtindo um devir nativo com as nativas-informantes-amigas de Samoa

Ainda no âmbito das questões pós-modernas e pós-coloniais, Talal Asad fez uma importante crítica à pretensão dos antropólogos de objetivarem o discurso nativo numa totalidade redutora e estereotípica, uma fixidez racista diria Homi Bhabha. E como considerar as diferenças orais nativas como desigualdades interseccionais e suas totalizações essencializadoras estratégicas? Qual o lugar do antropólogo diante do nativo, mas também informante, interlocutor e até “amigo”, para alguns antropólogos? Como evitar reificar a oralidade nativa como discurso da diferença e considerar as fronteiras frágeis dos grandes divisores; assim como o contágio na persona do antropólogo das contra-interpretações nativas, de que fala Roy Wagner?


Stephen Tylor na escrita histérico-compulsiva e nativo com preguiça da tara antropológica ao fundo.
Visualidade, oralidade e a escuta mobilizaram antropólogos em seus encontros com a diferença. Enquanto historiadores orais purificam a subjetividade da oralidade dos depoimentos obtidos, diferenciando história e memória, qual a distância ou proximidade de os antropólogos, agora às voltas com as naturezas do corpo nativo e suas habilidades no ambiente e na vida, devem ter diante da fala nativa? Se a antropologia não é a fala branca, cisgênero, heterossexual, ocidental moderna da antropologia e tampouco é “dar voz ao nativo” e dormir com a consciência tranquila e uma etnografia sem crítica, é uma teoria do encontro e da fantasia da comunicação e da tradução plena? Estes impasses e angústias persistem como fantasmas das fantasias e ficções das antropologias em curso entre campo, voz nativa e etnografia.

_______________________
P.S: Esse texto é uma prova escrita realizada para o concurso de professor do magistério superior de teoria antropológica da Universidade Federal Fluminense. Fotografei a prova ao pedir para ver a nota da banca e cogitei pedir revisão, mas desisti. O concurso teve 61 candidatos inscritos concorrendo para uma vaga, 32 estiverem presentes e apenas 13 realizaram a prova didática. A nota de corte era 7 e eu obtive uma média de 6,6 dos cinco avaliadores. Esse ponto de prova (trabalho de campo, etnografia e relato oral)  e outro (sistemas de conhecimento e antropologia da educação) não constavam no edital  e foram acrescentados na hora da prova, a despeito do questionamento dos candidatos. Este é um tema de domínio de todo antropólogo e causa estranheza que apenas de 13 candidatos tenham obtido notas acima de 7 (na média dos cinco avaliadores ou na maioria das notas emitidas?), tanto que um pedido de recurso na nota levou a uma reclassificação significativa.  Ao contrário do que preconizava a antropologia mencionada acima, com seus ideários bem intencionados e benevolentes, na antropologia universitária dos concursos o outro é um eu meritocrático, avaliado por uma banca através de um concurso obscuro e com regras e critérios nada transparentes.

domingo, 23 de outubro de 2016

Vamos falar de Star Trek?

(post para minha mãe, dona Rolinka, que me fez a trekkie que eu sou)

Acho que adiei por demais falar aqui de ficção científica. Falar de verdade, digo, não apenas fazendo uma citação en passant em textos sobre outros assuntos. Oportuno para esta semana seria falar de Black Mirror e seus alertas distópicos sobre o futuro-que-já-é. Nas redes sociais, é disso que se está falando. Mas meu coração pede há muito tempo que eu ensaie alguns avanços pelo espaço, a fronteira final, com as viagens da Nave Estelar Enterprise.

Esse é o papel de parede do meu computador ;)


Eu sou apaixonada desde criança por Jornada nas Estrelas, na época em que a série clássica e, depois, a Nova Geração, passavam na Record no início dos anos 1990, um pouco depois de Silvio Santos ter trabalhado na sua venda para Edir Macedo (que coisa, não?). Minha mãe e meu irmão adoravam Spock, o vulcano lógico e mentalmente superior aos seus colegas da Federação. Eu sempre preferi McCoy, seus arroubos e suas esperanças. Do capitão Kirk todos gostávamos, mas ele era demasiado o cowboy do espaço valente e pegador para ser o favorito de alguém. De toda forma, um dos aspectos que sempre me encantou em Star Trek foi a apresentação de dilemas de difícil solução, onde a moralidade que traça fronteiras entre o certo e o errado, o bem e o mal, era insuficiente. Uma das lembranças mais nítidas que eu tenho é estar deitada no tapete peludo em frente à TV, assistindo The Menagerie, vendo Spock enfrentando a corte marcial por levar o capitão Pike (protagonista original do episódio piloto da série, "The Cage") para o planeta proibido Talos IV. No final do episódio, descobre-se, Spock quer que Pike seja novamente envolto nas ilusões que os talosianos projetam em seu "museu" de espécies alienígenas. Assim Pike, que está com o corpo terrivelmente alquebrado devido a uma missão prévia, poderia ter uma vida plena novamente, mesmo que dentro da "gaiola". Este tema, de trânsitos entre virtual e real, liberdade e controle, felicidade e dever, estão ali em Black Mirror também. Mas uma coisa interessante em Star Trek, como uma narrativa de projeção de otimismo no contexto da Guerra Fria, é que todos estão empenhados em fazer o melhor, ainda que discordem.

Pike na cadeira

Encantava-me a ponte da Enterprise, multinacionalista. O capitão era logicamente americano, James Tiberius Kirk, cujo nome parodiava o famoso capitão James Cook, aquele que foi tomado pelo deus Lono, reverenciado e depois morto pelos habitantes das ilhas polinésias (como Marshall Sahlins conta em As Ilhas de História, sendo depois contextado pela crítica pós-colonial de Obeyeskere). Kirk era intrépido, tendendo a ignorar alguns regulamentos da Frota Estelar (notadamente a Primeira Diretriz), esgarçando os limites da nave, de seus tripulantes e do humano, tornando-se lendário. Americano também era Leonard McCoy, o oficial médico e a consciência do senso comum do grupo (lembrei dele no último filme dos Vingadores e o papel atribuído ali ao Arqueiro Verde Gavião Arqueiro). O oficial de ciências Spock, por sua vez, trazia o conceito interessante de mestiço, meio-humano, meio-vulcano, lutando para pertencer à cultura em que foi criado e ser um Vulcano sem defeitos, mas também tendo que ser um mediador entre mundos. Pavel Andreievich Checov entra como navegador, como o "novinho" e como o russo que prova que as guerras na terra finalmente cessarão (havia na narrativa a previsão de uma Terceira Guerra Mundial pelo começo do século XXI. Eu sempre achei que, como as guerras nunca cessam e de fato estão pelos cinco continentes, não haveria um evento histórico assim designado. Mas posso estar errada). Sulu, o oficial de leme, foi colocado ali para ser o asiático genérico (Orientalismo, oi?), mas tornou-se naturalmente o oficial japonês, ganhando um primeiro nome Hikaru, em um romance de Star Trek escrito pela Vonda McIntire ("O Efeito Entropia", li quando tinha uns dez anos e desde então me apaixonei pela palavra entropia). Montgomery Scott é o meu segundo favorito, porque seu papel de engenheiro é basicamente fazer a Enterprise performar ações que ela não foi projetada para fazer. Anarquizando a ciência, sempre gostei disso (ainda bem que eu não fui para as Exatas, hein? Poderia, me dava bem com matemática, química e física no colégio). E Uhura, é claro, que só lentamente eu fui entender como mais do que a telefonista da nave. E a enorme quebra de paradigmas que era uma mulher negra na Ponte de Comando. E o quanto Nichelle Nichols é uma mulher incrível. Mas eu só me liguei que a personagem era de fato africana ao rever "The Man's Trap", em que ela encontra no corredor um alienígena disfarçado que fala com ela em swahili. Me lembro de ter pensado "ainda bem que no futuro outras línguas além do inglês ainda existem na terra".

Notem o cabelo Beatle de Checov


E o multinacionalismo da ponte da Enterprise era extensível à modelagem da Federação dos Planetas Unidos, a versão interplanetária de uma ONU que teria dado certo em termos de regulação interna. Os planetas, afinal, não deixaram de ser pensados em um formato de Estado-nação, em uma certa limitação da imaginação cosmopolítica. O limite da alteridade e da intransponibilidade diplomática estava além. Os inimigos eram aqueles alienígenas pouco razoáveis. Os guerreiros klingons e os traiçoeiros romulanos, apartados há milênios dos evoluídos vulcanos. A Zona Neutra, o espaço por onde não se devia trafegar, era algo como uma alegoria à Cortina de Ferro da Guerra Fria, mas como toda fronteira, um local de encontro e negociação. A Primeira Diretriz, que impedia o contato e a interferência com "planetas e raças menos evoluídos", refletia os dilemas de uma outra forma de isolamento ao endossar certas noções de evolução de base tecnológica. Ao mesmo tempo, uma tentativa de ética humanista em um cenário pós-humano, que apostava que a violência é o último refúgio do incompetente, pra usar a frase célebre do Isaac Azimov (que é largamente homenageado em A Nova Geração).

aka monopólio de tecnologia

Creio que a maioria dos fãs de Jornada nas Estrelas tem sentimentos ambivalentes em relação ao reboot da série de 2009. Tendo passado a vida inteira ouvindo os fãs de quadrinhos se queixando, eu acho que estava escaldada de certa forma. Star Trek (2009), Star Trek Into the Darkness (2013) e Star Trek Beyond (2016) alteram não apenas a linha do tempo, mas a dinâmica entre as personagens. Scotty ganha mais destaque. Em homenagem à militância do ator original George Takei, Sulu torna-se gay (embora seu beijo tenha sido censurado do terceiro filme). E Spock se envolve com Nyota Uhura, que passa a fazer o contrapeso emocional nos dois primeiros filmes, em uma chave bastante diferente do McCoy original.






A mudança de Spock é o que mais me interessa. O Spock clássico de Leonard Nimoy vivia o dilema dos mestiços, de viver entre dois mundos e ser algo como um eterno forasteiro, insuficiente aos olhos de seu pai, o Embaixador Sarek. Por isso, seu controle emocional e ética vulcanos eram sempre redobrados. E por isso é tão especial que ele tenha transferido seu espírito, seu katra, justamente para McCoy, ao morrer no final do filme The Wrath of Khan (Cumberbatch que me desculpe, mas sua caracterização como Khan no reboot ficou mais do que péssima, em parte por causa do roteiro ruim de Into The Darkness). Eu acabei hoje de ler o romance Sarek, de AC Crispin, ambientado no cenário original. É muito bom para pensar a relação entre Sarek e Spock (com os contrapontos da mãe Amanda e do meio irmão Sybok, que aparece no filme The Final Frontier como uma espécie de guru). O Spock de Zachary Quinto é o Spock da diáspora, filho de um mundo aniquilado, um dos últimos remanescentes de sua raça. Por isso, trata-se de um Spock menos preocupado em ser impassível, mais emotivo, mais humano talvez. Daí seu dilema em Star Trek Beyond, em deixar a Frota Estelar e suas obrigações militares para fazer o salvamento do que ainda resta de Vulcan, construindo uma colônia com os sobreviventes que também não estavam no planeta destruído. Este é o tema de suas conversas com Uhura, que denomina como frieza o que é o distanciamento necessário para o trauma do genocídio vivido (O que é decepcionante. Apesar da maior participação de Uhura, tenho para mim que sua caracterização ficou mais machista, pois ela é um tanto egocêntrica e reativa demais, e age demais em função de Spock).

Não é legal quando seu planeta natal é consumido por um buraco negro


Enfim, ainda escrevo um post apenas sobre os reboots de Star Trek e seus vilões como metáforas das ansiedades contemporâneas. Porque todas as narrativas são, em alguma medida, narrativas de seu próprio tempo. Mas quis fazer um post (textão) falando da minhas impressões e relações com personagens que seguem comigo, próximos ao coração.

sexta-feira, 21 de outubro de 2016

Nota sobre o after party da democracia

Estou em Santos, onde resido. Pelo menos segundo meu domicílio eleitoral. Foi aqui que nasci e onde mora minha família, onde está a maior parte de meus livros e parte considerável de minha burocracia. Título de eleitor, agência bancária. Tendo saído há mais de década, foi aqui que larguei as instituições, levando comigo só algumas poucas, tipo as religiosas, algumas acadêmicas, e um tanto de intuições sobre o fazer do mundo.

Digo isso porque entrei no cartório eleitoral da minha Zona para pagar a multa, deixe-me ver, de R$ 3,51 por não ter participado da última festa da democracia. Tampouco justifiquei no dia, porque precisava limpar a casa e regar as plantas, e ir pra praia, e faço votos de que isso seja sempre mais importante que o sistema de votos universais. Mas não pretendo utilizar este espaço para uma apologia ao voto nulo, vote nulo, mas sim para relatar o que ouvi.

Com a chuva do lado de fora, entrei no cartório enquanto um servidor passava o pano no chão da entrada. Ele me olhou quando abri a porta, eu sorri, dei boa tarde e ele de volta. Logo pedi o pano para não sujar o que ele acabara de limpar, e limpei meus pés. O servidor da Justiça Eleitoral largou o pano de chão e foi sentar detrás do balcão, e me atendeu.

“Vim regularizar minha situação, não votei nas últimas eleições. Nem lembro exatamente o procedimento, mas é aquela multa.”

“Aham.”

Enquanto isso, uma senhora chegava ao cartório e sentava no balcão ao lado, sendo atendida por um atendente bem menos simpático. Vacilando um pouco, ela disse “Oi, eu não votei na última eleição e...”

“E por quê?”

“É que... não estava na cidade.”

“Mas estava no país?”

“Sim.”

“Todos os cartórios atenderam as justificativas de ausência, no dia mesmo. Estavam todos abertos. A senhora deveria ter resolvido isso.”

“É. Eu... não justifiquei porque meu filho... na verdade eu precisei isso, aquilo e mais aquilo outro, aconteceu isso, aquilo e mais aquilo outro, etc”

 
A última fala, claro, não é uma transcrição fiel, mas acho que o espírito do encontro está marcado. Sem saber exatamente o que fazer por não ter votado, a senhora se colocou frente a uma autoridade que, sabendo bem o que faz em seu trabalho, resolveu reprimendar a senhorinha. Ela não estava em posição de afirmar sua autonomia, digamos, por não ter votado; aquele espaço era um reduto da democracia oficial, da instituição do Estado. Ela fora pega no erro, pelo menos assim pensavam ela e o atendente, e por ser pega no erro já chegou no balcão com a defesa tentativamente alta.

Enquanto isso, meu atendente e eu não trocávamos palavra, até porque ele em segundos preenchera meu formulário, imprimira a guia de pagamento e me dissera “Pague em qualquer caixa eletrônico, banco ou lotérica para dar baixa”, e eu saí antes de saber como a senhora continuaria, se é que continuaria, levando bronca da democracia.

Andei algumas quadras até a casa lotérica, paguei a multa com moedas no valor exato – na verdade, R$ 3,50, espero que o Estado não venha me cobrar um centavo – e voltei ao cartório. Tudo rápido, sem muita conversa, porque eu razoavelmente sei as peças que precisam ser mexidas nesse jogo eleitoral. Na parte que me cabe, claro.

De volta à Zona, só meu atendente continuava no balcão, a senhorinha havia ido embora, e o outro funcionário conversava com outros funcionários no fundo do salão. Entreguei a Guia de Recolhimento da União paga, sentei para esperar a declaração impressa e assinada, e aproveite para perguntar “Vocês vão fazer cadastro biométrico?”. O atendente fez que sim com a cabeça. “Já começamos, desde o fim de 2015 até o começo deste ano.”

Ensaiei um “Nem moro aqui” ou um “É que vivo viajando”, mas deixei pra lá. Ele continuou: “Uns 10% dos eleitores já fizeram. Por enquanto, é com agendamento. Marca-se a data, vem aqui e cadastra. É rápido.”

“E é obrigatório?”

“Ainda não. Mas é bom fazer logo, sabe como é brasileiro: quando for obrigatório, vai todo mundo vir correndo.”


Sei como é brasileiro. Pensei rapidamente no atendente foucaultiano passando um sabão na senhora anarquista, no próprio atendente que me atendia sabendo como é brasileiro, na obrigação do voto e da impressão digital. Há um controle pervasivo dos corpos, como sabemos, mas há também um controle pervasivo e sempre presente das mentes, das expectativas, do lugar ocupado por cada cidadão (sic) em toda cidade, vila, aldeia, em cada estado do Estado.

Diferente da senhora trêmula que se apresentava à democracia, naquela situação específica eu sabia o caminho das pedras, e a democracia que me atendeu sabia que eu sabia. Não havia jogo possível ali, a menos que ele realmente quisesse encrencar – possibilidade real, dados os pequenos e nem tão pequenos poderes – mas ele não quis. Simplesmente fez girar a máquina burocrática que me permite ser cidadão (sic) ao preço bienal de R$ 3,51.

“Precisa da declaração definitiva agora?”, ele perguntou. “Para tirar passaporte, algo assim?”

“Não, não preciso. Por quê?”

“Porque a certidão que estou dando é provisória. A partir de 09 de novembro, pelo site, você expede a definitiva. Para a Justiça Eleitoral, as eleições ainda estão em curso, por isso. O sistema ainda está aberto.”

Manifestações por democracia real na Espanha, 2011.

Saí de lá pensando que o sistema sempre estará aberto, por mais que atendentes da justiça façam parecer que não, por mais que façam parecer que há um muro além do qual não é possível seguir, que há cartórios panópticos abertos durante os pleitos, esperando cidadãos (sic) tremerem frente a avatares da democracia. Mas vocês sabem como é brasileiro: eu posso estar errado.

segunda-feira, 5 de setembro de 2016

Julgamentos e histórias


Clio e seus pergaminhos, que não são os autos do processo


"A história os julgará". Acho tão curiosa essa expressão que anda circulando pelos mais diferentes enunciadores, destinada a alvos também muito diversos. Esta é uma frase que joga muitos jogos ao mesmo tempo, e acho que vale cá uma paradinha para pensarmos sobre ela.

Que história é essa, afinal de contas? História é daquelas palavras com muitos usos e sentidos. Em português, muitas vezes, temos que nos haver com as dificuldades de traduzir aquilo que os usos da língua inglesa consagraram como a distinção entre story (mais próxima da narrativa, do conto, do causo, aquilo que por vezes chamamos de "estória" - um vocábulo que nem todo mundo reconhece) e history, pensada como a História.

A História também tem vários sentidos, muitas vezes diametralmente opostos. Deve ser por isso, aliás, que se grava a palavra com H maiúsculo, essa letra que a gente pode colocar de ponta cabeça e que aponta para várias direções ao mesmo tempo (Este não é um comentário de etimologia ou filologia).

Como a História é uma espécie de Outro da Antropologia, constantemente temos que nos haver com vários sentidos de história. Há um belo texto do Márcio Goldman, antropólogo do Museu Nacional no Rio de Janeiro, chamado "Lévi-Strauss [saravá, vovô] e os Sentidos da História". Lá, Goldman retoma três sentidos possíveis de história. A chamada história dos historiadores, que é a história como historiografia, cujo estudo disciplinar baseia-se muito em registros escritos; a filosofia da história, tal como concebida no pensamento ocidental, que pensa a história em princípios de causalidade; e a ideia de historicidade, que explode uma noção única de história e se volta para como diferentes experiências culturais pensam a passagem do tempo, os ritmos, as durações, as transformações e repetições, etc.

Mesmo as nossas filosofias da história transformaram-se muito, tem também suas próprias histórias. Uma dessas histórias é aquela contada por Paul Ricoeur, na primeira parte de Tempo e Narrativa, em que ele traz para a conversa Aristóteles e Santo Agostinho, distantes séculos entre si e não obstante dialogando. Agostinho participa a partir do livro XI das Confissões, que é um lindo livro. Lá, há uma frase infinitamente citada, porque provocativa:

 “Que é, pois, o tempo? Quem poderá explicá-lo clara e brevemente? Quem o poderá apreender, mesmo só com o pensamento, para depois nos traduzir por palavras o seu conceito? E que assunto mais familiar e mais batido nas nossas conversas do que o tempo? Quando dele falamos, compreendemos o que dizemos. Compreendemos também o que nos dizem quando dele nos falam. O que é, por conseguinte, o tempo? Se ninguém me perguntar, eu sei; se o quiser explicar a quem me fizer a pergunta, já não sei.”
Santo Agostinho para colorir. Divirtam-se


Agostinho vai discorrer sobre como não podemos medir o tempo, apenas a percepção de seu decorrer a partir do agora do presente, e de como o passado existe como memória e o futuro como espera. Esta é, é claro, uma apresentação bem rasteira, mas dá algumas pistas para seguir.

Uma delas é que a história não é apenas a passagem do tempo, mas uma forma de habitar o tempo. E este habitar pode colocar em xeque a irreversibilidade do tempo (a tal da entropia). E, como habitantes do tempo, temos que vivemos o presente não apenas como consequência do passado, mas também como aquilo que faz o passado variar, a partir do que se narra no presente.

A história é, pois, feita de lembranças e sobretudo de esquecimentos, o que tem sido apontado como um dos grandes problemas para o amadurecimento da consciência política no Brasil. Esquecemos facilmente dos atos passados dos nossos políticos e poderosos, assim como esquecemos das transformações das paisagens das nossas cidades, esquecemos do que conquistamos como direitos aceitando-os como dádivas clientelistas, esquecemos até mesmo de quem foram os nossos candidatos escolhidos nas últimas eleições e quais eram as alianças costuradas naquela disputa. Esquecemos também que a história que conhecemos (mal), a história ensinada na escola, é uma história cujo conteúdo foi formado por decisões editoriais de grupos de comunicação, editoras, técnicos ministeriais e estagiários fazendo gambiarras enquanto tentam passar de fase no Candy Crush. Sendo assim, de que capacidade de julgar estamos falando quando dizemos que a história vai julgar? Que julgamento poderá ser esse?

É engraçado como a imagem que automaticamente irrompe na cabeça é a de Hitler, julgado e condenado por seus atos hediondos contra a humanidade. Julgado e condenado porque perdeu a guerra, aliás. A ficção científica de boa ou má qualidade visceja em realidades alternativas em que o III Reich teria ganho a guerra e os julgamentos da história seriam outros (a menos que os heróis viajantes no tempo ou em realidades alternativas consigam recolocar o trem da história no trilho certo).

Mas mesmo um evento tão calamitoso como a II Guerra Mundial, ou certos golpes de estado, poderiam receber outras leituras, serem abraçados por outros regimes de historicidade. Poderiam ser presságios para um advento do fim dos tempos e do mundo, como foram para tantas pessoas. E curiosamente mesmo essa escatologia abole o tempo e depois o recoloca. Vivemos tantas narrativas de pós-apocalipse, algumas na imaginação, outras no cotidiano. Inauguram-se tempos fora do tempo em espaços fora do espaço, distopias e utopias que se espelham mutuamente.

Mitos e rituais, por um lado, e jogos e outras formas de entretenimento, por outro, trazem-nos esses deslocamentos a partir de diferentes subjetividades, ou subjuntividades (como se fosse...). Um pouco a distinção em inglês entre make beliefs (fazer crenças) e make believe (fazer de conta). Formas de existência passadas, presentes e futuras que se dão como Devires, como estados potenciais que podem vir a ser ou não e cuja existência nunca é absoluta.

A ideia de uma História que julga pressupõe a ideia de uma história linear, com um sentido único, com causas e efeitos claros e discerníveis em que o passado determina o presente e pode assim ser avaliado, em que o futuro é razoavelmente previsível e pode ser programado. É uma ideia que lida mal com aquilo que Max Weber chamou de paradoxo das consequências, em seu livro clássico "A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo", de que certos efeitos, além de imprevisíveis, podem ser opostos à razão que norteia as escolhas feitas.

Como uma das regras não ditas aqui do ZAP é falar sempre de Úrsula Le Guin, nossa musa da ficção especulativa, eu diria que um dos livros mais interessantes para pensar a incapacidade de se julgar a história é o livro The Dispossessed (1974), que não à toa tem o subtítulo de An Ambiguous Utopia, e que faz parte do Ciclo Hainish. Em português o livro ganhou traduções como Os Despossuídos ou Os Despojados. O livro é ambientado em mundos gêmeos, Urras e Anarres. Urras é claramente uma alegoria ao mundo da Guerra Fria, com potências similares aos EUA e à União Soviética. Anarres, por sua vez, para onde um terceiro grupo se exilou há décadas atrás no intuito de construir uma sociedade em moldes anarco-sindicalistas, é um mundo com condições de vida mais duras. Anarres vive uma sociedade de abundância, em que as pessoas não estão de fato desprovidas de nada porque não se opera com a ideia de propriedade, o que não os livra da ameaça da fome durante invernos mais rigorosos. O idioma falado em Anarres busca ao máximo suprimir a primeira pessoa, de modo a destituir o ego de seus falantes, o que condiciona pensamento, linguagem e cultura. O enredo gira em torno de Thevet, um físico que busca desenvolver uma Teoria Geral do Tempo, e para isso, precisa buscar recursos científicos em Urras. Thevet faz algo imperdoável para seus colegas exilados e retorna para Urras, criando várias formas de comoção política. Thevet acaba sendo uma espécie de anti-herói cultural, pois enquanto lida com as questões de tempo e simultaneidade conclui que "a verdadeira jornada é retornar", algo que é feito de muitas maneiras ao longo do livro, inclusive enfrentando certos julgamentos da história que são tão ambíguos quanto sua utopia.


Pra vocês não se perderem por aí


Há um conceito perigoso de História por trás da assertiva de que a História vai julgar. Uma teleologia da História que pode criar a ilusão de que somos menos responsáveis pelo passado que já foi julgado e processado, enquanto somos tão pouco responsáveis pela nossa memória. E aqui trago a sexta Tese sobre o Conceito de História de Benjamin:


Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo "como ele de fato foi". Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo. Cabe ao materialismo histórico fixar uma imagem do passado, como ela se apresenta, no momento do perigo, ao sujeito histórico, sem que ele tenha consciência disso. O perigo ameaça tanto a existência da tradição como os que a recebem. Para ambos, o perigo é o mesmo: entregar-se às classes dominantes, como seu instrumento. Em cada época, é preciso arrancar a tradição ao conformismo, que quer apoderar-se dela. Pois o Messias não vem apenas como salvador; ele vem também como o vencedor do Anticristo. O dom de despertar no passado as centelhas da esperança é privilégio exclusivo do historiador convencido de que também os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado de vencer.

 E, ao mesmo tempo, essa expectativa de julgamento da História cria a fantasia de que poderemos dar à História um sentido unívoco no e para o futuro, encarregado de dar inteligibilidade a este presente, a discernir suas causas e efeitos quando ele também se tornar passado, e de encontrar a medida certa de justiça para julgá-lo.

Angelus Novus, do Paul KLEE. Pobre anjo da história, descabelado como eu.


****

Por falar em tempo, era para eu escrever semanalmente às terças-feiras aqui. Claro que isso não aconteceu. Eu funciono no Tempo Nuer. O Leandro sabe disso. Mas tudo bem, o que vale é a intenção.

****

Meu mestrado é sobre histórias/narrativas em um julgamento. Perspectiva simetricamente oposta. Que coisa louca.

sexta-feira, 2 de setembro de 2016

Os que dão as costas a Omelas - Ursula K. Le Guin e a empatia do entendimento

Ursula Kroeber Le Guin, sobre quem já falei neste espaço, é uma das responsáveis pelo melhor da literatura que se faz hoje. O conto abaixo, tradução de "The ones who walk away from Omelas", há anos é um dos maiores textos que trago comigo. Uma ficção, mas não apenas.

Este conto foi vencedor do prêmio Hugo em 1974, um dos maiores reconhecimentos da literatura de fantasia/ficção científica que há em língua inglesa. Trago, após um feliz achado, a tradução de Paulo Brabo, de seu sáite, A Bacia das Almas.

Jon-Eric's class GSS 13
OS QUE DÃO AS COSTAS A OMELAS

"Com um clangor de sinos que fez as andorinhas voarem em disparada, o Festival do Verão chegou à cidade de Omelas, de torres fulgurantes junto ao mar. O cordame dos barcos atracados cintilava com bandeiras. Nas ruas, entre casas de telhados vermelhos e paredes pintadas, entre jardins antigos e musgosos e sob avenidas arborizadas, ao largo de imensos parques e edifícios públicos, as procissões avançavam. Algumas eram decorosas: gente anciã trajando longas e rígidas túnicas em malva e cinza, sisudos capatazes, mulheres serenas e satisfeitas carregando bebês no colo e conversando enquanto caminhavam. Em outras ruas o ritmo da música se adiantava: um rutilar de gongo e de tamborim e as pessoas começavam a dançar, a procissão em si uma dança. As crianças deslizavam para dentro e para fora, seus gritos agudos elevando-se como o das andorinhas que cruzavam em voo acima da música e da cantoria. Todas as procissões serpenteavam em direção ao norte da cidade, onde na extensa várzea conhecida como Verdes Prados meninos e meninas, nus sob o ar límpido, com pés e calcanhares sujos de lama e braços longos e ágeis exercitavam seus irrequietos cavalos antes da corrida. Os cavalos não usavam qualquer equipamento além de rédeas sem embocadura, suas crinas trançadas com fitas em prata, ouro e verde. Bafejavam pelas narinas e empinavam e exibiam-se uns para os outros; estavam imensamente agitados, sendo o cavalo o único animal a adotar como sua nossas cerimônias. Na distância, a oeste e norte, erguiam-se as montanhas que envolviam parcialmente Omelas e sua baía. O ar da manhã estava tão límpido que a neve que ainda coroava os Dezoito Picos ardia com fogo branco-dourado através das milhas de ar ensolarado, debaixo do azul escuro do céu. O vento que havia bastava apenas para fazer com que tremulassem de vez em quando as flâmulas que delimitavam a pista de corrida. No silêncio dos vastos prados verdes ouvia-se a música que serpeava ao longo das ruas da cidade, mais longe aqui, mais perto ali e sempre se aproximando, enquanto uma sutil e cordial doçura de ar ocasionalmente vibrava, congregava-se e explodia no formidável e jubiloso clangor dos sinos.

Jubiloso! Como se descreve a alegria? Como descrever os cidadãos de Omelas?

Olhe que não eram gente simples, apesar de serem felizes. Porém a verdade é que hoje em dia deixamos de proferir quase toda palavra de alegria; todos os sorrisos tornaram-se arcaicos. Diante de uma descrição como essa nossa tendência é fazer determinadas suposições; diante de uma descrição como essas nossa tendência é procurar em seguida o Rei, montado num formidável corcel e cercado por nobres cavaleiros, ou talvez numa liteira de ouro transportada por musculados escravos. Mas não havia rei. E não usavam espadas, nem tinham escravos. Não eram bárbaros. Não conheço as leis e normas que regiam a sua sociedade, mas suspeito que fossem singularmente pouco numerosas. Do mesmo modo que haviam aberto mão da monarquia e da escravatura, seguiam sem bolsa de valores, sem publicidade, sem polícia secreta e sem bomba atômica. Mas preciso repetir que não eram gente simples, não meigos pastores, nobres selvagens, insípidos utopistas. Não eram menos complexos do que nós.

O problema é que temos o mau hábito, encorajado por pedantes e estetas, de considerar a felicidade como algo meio idiota. Só a dor é intelectual, só a perversidade é interessante. Aqui reside a traição do artista: uma recusa a admitir a banalidade do mal e o terrível tédio da dor. Se não se pode vencê-los, junte-se a eles. Se dói, faça de novo. Porém louvar o desespero é condenar o deleite, abraçar a violência é perder acesso a todo o resto. E quase perdemos esse acesso; já não podemos descrever um homem feliz nem fazer qualquer celebração de júbilo. Como posso lhe falar sobre os habitantes de Omelas? Não eram crianças ingênuas e felizes — embora seus filhos fossem, de fato, felizes. Eram adultos maduros, inteligentes e apaixonados cujas vidas não haviam sido arruinadas. Ah, o milagre. Mas queria ser capaz de descrevê-los melhor. Queria ser capaz de convencer você. Nas minhas palavras Omelas soa como uma cidade de conto de fadas: há muito tempo atrás e num lugar distante, era uma vez. Talvez fosse melhor deixar que vocês a imaginassem como achassem por bem, porque ela se mostrará à altura do desafio, e com certeza não serei capaz de satisfazê-los a todos. Por exemplo, e quanto à tecnologia? Não creio que haveriam carros e helicópteros nas ruas e acima delas; isso se deduz do fato de que o povo de Omelas é um povo feliz. A felicidade está fundamentada sobre uma correta discriminação entre aquilo que é necessário, aquilo que não é necessário mas não é destrutivo, e aquilo que é destrutivo. Na categoria intermediária, entretanto — a de coisas desnecessárias mas não destrutivas, que inclui conforto, luxo, exuberância, etc — é perfeitamente concebível que tivessem aquecimento central, metrô, máquinas de lavar e todo tipo de dispositivos ainda não inventados aqui: fontes de luz flutuantes, energia sem combustível, a cura do resfriado comum. Ou poderiam não ter nada disso: não faz diferença. Fica a seu critério. Estou inclinada a imaginar que gente das cidades ao longo da costa tem se dirigido a Omelas durante os dias que antecedem o Festival em trens muito rápidos e bondes de dois andares, e que a estação ferroviária de Omelas é na verdade o prédio mais bonito da cidade, embora mais simples do que o esplêndido Mercado Rural. Mas mesmo que abramos uma concessão para trens, temo que até agora Omelas possa estar dando a alguns de vocês uma impressão de fanfarronice. Sorrisos, sinos, paradas, cavalos, blá blá blá. Se você está achando isso, por favor acrescente uma orgia. Se uma orgia for ajudar, não hesite. Vamos combinar, no entanto, que não teremos templos dos quais saem belos e nus sacerdotes e sacerdotisas, já meio extáticos e prontos para copular com qualquer homem ou mulher, amante ou estranho, que anseia por uma união com a profunda divindade do sangue, embora essa tenha sido minha primeira ideia. Acho melhor não termos templos em Omelas — pelo menos, não templos operados por gente. Religião sim, clero não. Naturalmente que essa gente nua e bonita pode simplesmente perambular por aí, oferecendo-se como divinos suflês para satisfazer a fome dos necessitados e o arrebatamento da carne. Que unam-se então às procissões. Que repiquem os tamborins acima das cópulas, e que o desejo cruento seja proclamado com gongos, e (detalhe não menos importante) que a progênie desses deleitáveis rituais seja amada e acolhida por todos. Uma coisa que estou certa de estar ausente de Omelas é a culpa. Mas o que mais deveria haver ali? Num primeiro momento achei que não haveriam entorpecentes, mas seria puritanismo. Para os que curtem, a fragrância sutil, doce e insistente de drogas pode perfumar os caminhos da cidade, drogas que de início produzem formidáveis leveza e intensidade à mente e aos membros, depois de algumas horas uma vaga languidez, e finalmente maravilhosas visões do genuinamente arcano e dos segredos mais profundos do universo, suscitando ainda o prazer de sexo inteiramente inacreditável; e não causa dependência. Para gostos mais moderados estou achando que deveria haver cerveja. Que mais? O que mais tem lugar na cidade do júbilo? O sentimento de vitória, sem dúvida, a celebração da coragem. Mas como renunciamos ao clero, abramos também mão de soldados. A alegria fundamentada na chacina bem-sucedida não é o tipo certo de alegria; não vai servir; é medonha e trivial. Um contentamento generoso que não conhece limites, um triunfo magnânimo sentido não contra um inimigo exterior mas na comunhão com o que há de mais excelente e belo nas almas de todos homens em todo lugar, bem como o esplendor do verão do mundo: é isso que enche o coração dos habitantes de Omelas, e a vitória que celebram é a vida. Não creio que muitos deles precisem usar drogas.

A esta altura a maior parte das procissões já chegou aos Verdes Prados. Um estupendo cheiro de comida escapa das tendas azuis e vermelhas dos provisioneiros. Os rostos de todas as criancinhas estão afetuosamente grudentos; na benigna barba cinza de um homem, duas migalhas de folhado permanecem emaranhadas. Os garotos e garotas montaram seus cavalos e estão se agrupando junto à linha de partida. Uma senhora gorda, baixa e sorridente está distribuindo as flores de um cesto, e rapazes muito altos usam as flores no cabelo reluzente. Uma criança de nove ou dez anos senta-se sozinha na orla da multidão, tocando uma flauta de madeira. As pessoas param para ouvir e sorriem, mas não falam com ela, pois ela nunca para de tocar e nunca as vê, seus olhos escuros inteiramente arrebatados pela coisa doce e tênue mágica da melodia.

Ela então termina, baixando devagar as mãos que seguram a flauta de madeira.

E como se aquele pequeno silêncio privado fosse o sinal, de repente uma trombeta soa do pavilhão ao lado da linha de partida: altiva, melancólica, pungente. Os cavalos recuam sobre suas pernas esguias, outros relincham em resposta. Seus rostos muito sóbrios, os jovens cavaleiros acariciam os pescoços de suas montarias e tranquilizam-nas em sussurros: “Calma, calma. Assim, minha beleza, minha esperança…” Começam a alinhar-se em formação ao longo da linha de partida. As multidões ao longo da pista são como um campo de erva e como flores ao vento. Começa o Festival de Verão.

Você está acreditando? Está aceitando o festival, a cidade, a alegria? Não? Então deixe-me descrever mais uma coisa.

No subsolo de um dos belos edifícios públicos de Omelas, ou talvez no porão de uma de suas espaçosas residências privadas, há um quarto com uma porta trancada e sem janelas. Um pouco de luz penetra empoeiradamente por entre as frestas das tábuas, cortesia de uma janela coberta de teias de aranha em outra parte do porão. Num canto do quartinho dois esfregões de cabeças rígidas, emaranhadas e mau cheirosas postam-se junto a um balde enferrujado. O chão é de terra um pouco úmida ao toque, como chão de porão costuma ser. O quarto tem cerca de três passos de comprimento e dois de largura: um mero armário de vassouras ou um quartinho de ferramentas sem uso. Dentro do quarto há uma criança sentada. Pode ser um menino ou uma menina. Aparenta ter seis anos, mas tem na verdade dez. É deficiente mental. Talvez tenha nascido imperfeita, talvez tenha se tornado deficiente devido ao medo, à má-nutrição e à negligência. Ela enfia o dedo no nariz e ocasionalmente manuseia vagamente os dedos dos pés ou os órgãos genitais, enquanto permanece sentada no canto mais distante do balde de ferro e dos dois esfregões. Ela tem medo dos esfregões. Acha-os pavorosos. Fecha os olhos, mas sabe que os esfregões ainda estão ali em pé; e a porta trancada; e ninguém vai vir. A porta está sempre trancada e ninguém jamais vem, a não ser quando às vezes — a criança não tem noção de tempo ou de intervalo — às vezes a porta faz um alarido terrível e se abre, e uma pessoa, ou diversas pessoas, estão ali. Um deles pode entrar em chutar a criança para fazê-la ficar em pé. Os outros nunca se aproximam, mas espiam com olhos cheios de pavor e repulsa. A vasilha de comida e a jarra de água são rudemente enchidas, e a porta é trancada; os olhos desaparecem. As pessoas na porta nunca dizem nada, mas a criança, que não viveu desde sempre no quartinho de ferramentas e consegue lembrar a luz o sol da voz da mãe, de vez em quando fala. “Eu vou ser boazinha”, ela diz. “Me deixa sair, por favor. Eu vou ser boazinha”. Eles nunca respondem. A criança costumava gritar por ajuda durante a noite, e chorava um bom bocado, mas hoje em dia só faz uma espécie de lamúria, “irrã, irrã”, e fala com frequência cada vez menor. É também muito magra, e suas pernas não tem panturrilhas; sua barriga é proeminente; vive de meia vasilha de fubá e banha por dia. Está nua. Suas nádegas e coxas são uma massa de úlceras inflamadas, visto que vive sentada sobre o próprio excremento.

Omelas, por Andrew DeGraff

Todos sabem que ela está lá, todo o povo de Omelas. Alguns vieram vê-la, para outros basta saber que ela está lá. Todos sabem que ela tem de estar ali. Alguns entendem porquê, outros não, mas todos entendem que sua felicidade, a beleza da cidade, a ternura de suas amizades, a saúde de seus filhos, a sabedoria de seus eruditos, a habilidade de seus artesãos e até mesmo a abundância da sua colheita e o clima gentil de seus céus dependem inteiramente da abominável miséria dessa criança.

Isso é normalmente explicado às crianças entre os oito e os doze anos de idade, quando se tornam capazes de entender; e a maior parte dos que vem ver a criança são jovens, embora de vez em quando um adulto venha, ou volte, para vê-la. Não importa o quão bem tenha sido explicado a eles, esses jovens espectadores ficam sempre chocados e revoltados diante da visão. Sentem repugnância, sentimento ao qual se julgavam superiores. Sentem raiva, indignação e impotência, apesar de todas as explicações. Queriam fazer alguma coisa pela criança. Mas não há nada que possam fazer. Se a criança fosse trazida para a luz do sol, para fora daquele lugar repugnante, se fosse banhada e alimentada e confortada, seria de fato uma boa coisa; mas, se fosse feito, naquele dia e naquela hora toda a prosperidade e beleza e prazer de Omelas definhariam e seriam destruídos. Esses são os termos. Trocar toda o bem e toda a graça de cada vida em Omelas por essa única e pequena beneficência; jogar fora a felicidade de milhares pela chance de felicidade de um só: isso sim traria a culpa para dentro dos muros da cidade.

Os termos são estritos e absolutos; nem mesmo uma palavra de bondade pode ser oferecida à criança.

Não é raro que os jovenzinhos voltem para casa em prantos, ou numa indignação sem lágrimas, depois de verem a criança e enfrentarem esse terrível paradoxo. Ficam às vezes remoendo o assunto por semanas. Mas com o passar do tempo começam a perceber que mesmo se fosse libertada a criança não teria como ganhar muito com a sua liberdade; o vago prazerzinho da comida e de um lugar aquecido, sem dúvida, mas pouco mais do que isso. Ela está por demais degradada e deficiente para conhecer qualquer alegria genuína. Tem medo há tempo demais para chegar a se libertar do temor. Seus hábitos são grosseiros demais para poder responder a um tratamento humanitário. Provavelmente não iria demorar para que ela sentisse falta de paredes para protegê-la, de escuridão para os olhos e de seu próprio excremento para sentar. As lágrimas diante da amarga injustiça secam quando eles começam a perceber a terrível justiça da realidade, e a aceitá-la. Porém talvez sejam justamente suas lágrimas e sua indignação, o teste da sua generosidade e a aceitação de sua impotência, a verdadeira fonte do esplendor de suas vidas. Sua felicidade não é algo insípido e irresponsável. Sabem que, como a criança, não são livres. Conhecem a compaixão. É a existência da criança, sua consciência da existência dela, que torna possível a nobreza de sua arquitetura, a pungência da sua música, a profundidade da sua ciência. É por causa da criança que são tão gentis com seus filhos. Sabem que se a miserável não estivesse ali lamuriando-se na escuridão, o outro, o tocador de flauta, não poderia produzir sua música jubilosa enquanto os jovens cavaleiros se alinham em sua formosura para a corrida sob o sol da primeira manhã de verão.

Agora você acredita? Isso os tornou mais verossímeis? Mas há mais uma coisa a se contar, e essa é bem incrível.

De vez em quando um dos adolescentes que vai visitar a criança não volta para casa chorando ou indignado; não volta, na verdade, para casa. Por vezes também um homem ou mulher bem mais velhos ficam sem dizer nada por um dia ou dois, depois saem de casa. Essas pessoas saem para a rua e avançam rua afora sozinhas. Continuam andando e caminham direto para fora da cidade de Omelas, passando pelos belíssimos portões. Prosseguem caminhando para além das terras cultivadas de Omelas. Cada um vai sozinho, rapaz ou garota, homem ou mulher.

A noite cai; o viajante tem de passar por ruas de vilarejos, por entre casas com janelas iluminadas em amarelo, e prosseguir para a escuridão dos campos. Cada um deles sozinho, rumam para oeste ou para o norte, na direção das montanhas. Vão indo. Saem de Omelas, avançam escuridão adentro, e jamais voltam. O lugar para onde vão é um lugar ainda menos imaginável para nós do que a cidade da alegria. Sou inteiramente incapaz de descrevê-lo. É possível que nem exista. Mas parecem saber para onde estão indo, os que dão as costas a Omelas."

Ursula K. Leguin, em The Wind’s Twelve Quarters (1974). Tradução de Paulo Brabo